Desde que o Sistema Único de Saúde foi instituído, o Estado brasileiro nunca garantiu orçamento suficiente para seu pleno funcionamento, abrindo espaço para o crescimento do setor privado e comprometendo a garantia do direito à saúde, assegurado pela Constituição Federal de 1988. O fim da Emenda Constitucional 95, e a aprovação do arcabouço fiscal, é mais um capítulo dessa história.
No dia 1º de setembro, dezenas de pesquisadores, estudantes, gestores e trabalhadores da saúde participaram do seminário “Financiamento do SUS”, organizado pela Abrasco e pelo Observatório do SUS (ENSP/Fiocruz), com objetivo de aprofundar o debate e desenhar alternativas: é possível, e urgente , desenvolver um SUS ainda mais forte.
Rosana Onocko, presidente da Abrasco, iniciou o encontro anunciando alegria, mas muita responsabilidade. “A gente pensou esse seminário como um espaço para desdobrar nossa capacidade crítica, inventiva, criativa. Nossa função, neste momento do Brasil, é fornecer novas matrizes de pensamento. Tentar não deixar nossos pensamentos presos a anos de afirmações neoliberais”. Ela também saudou os presentes dizendo que estavam num espaço para discussão livre, para “concordar e também discordar”, e com a tarefa de pensar coisas boas para o povo brasileiro.
O seminário fez parte da programação de aniversário da ENSP, uma instituição com forte trajetória política e de produção de conhecimento. Marco Menezes, diretor da entidade, reforçou a importância do momento e a estratégica parceria com a Abrasco: “Este diálogo vai aprofundar o debate, busca responder também à questão – o SUS está numa janela de possibilidades ou sob ameaça? Sabemos que é necessário solidificar a participação da sociedade nesses espaços decisórios de gestão”.
O evento foi dividido em dois momentos: pela manhã, aconteceram duas mesas redondas, abertas ao público presencial e transmitidas virtualmente, que discutiram arrecadação – quanto e como direcionar financiamento para o SUS – e alocação de recursos, ou seja, como utilizar esses recursos. Eduardo Melo, pesquisador da ENSP e um dos organizadores do seminário, pontuou que as mesas foram muito oportunas e proveitosas:
“É evidente e inquestionável que o Brasil precisa ampliar o volume de recursos para o SUS, e é difícil planejar a alocação dos recursos se não tiver arrecadação suficiente. Saúde é um direito, e é também um fator de desenvolvimento do país. Devemos identificar novas receitas, como taxar produtos que causam mal à saúde e ao meio ambiente, por exemplo. Essas ideias passam pelo campo técnico, mas sobretudo pelo campo político”.
Oficinas resultarão em documentos propositivos
À tarde, cerca de 50 pesquisadores, gestores e trabalhadores da saúde se dividiram em oficinas fechadas para convidados. Isabela Santos, pesquisadora da ENSP e coordenadora da Comissão de Política, Planejamento e Gestão da Saúde da Abrasco, explicou que os grupos eram heterogêneos, reunindo pessoas com conhecimentos e contextos diferentes, e respondendo às mesmas perguntas das mesas da manhã.
Ela contou que as mesas serviram como “um adubo”, alimentando as oficinas, e enriquecendo a produção dos relatórios: “Foi franco e construtivo, com proposições. As pessoas complementavam e acrescentavam novas questões para o campo do financiamento da saúde. Pensamos desde a captação até a alocação dos recursos, como isso influencia nosso sistema, como se deve organizar esse cuidado, quem são as pessoas que trabalham. A gente pensou em todo o desenho do SUS” .
Adelyne Pereira e Luciana Dias Lima, ambas da ENSP e da Comissão da Abrasco, coordenaram grupos diferentes, e também ressaltaram a profundidade das discussões e o caráter construtivo e propositivo da atividade. “É necessário ter clareza dos problemas que devem ser enfrentados, ter propostas para o enfrentamento desses problemas, e estratégias políticas e meios para a implementação das propostas. Esse foi o mote das trocas de ideias que tivemos no grupo de trabalho”, disse Luciana.
Adelyne enalteceu a representação da academia, gestão e controle social na oficina, e defendeu uma “ação política (em diversas frentes) e de fortalecimento da participação social para a conquista da ampliação do financiamento público sob gestão pública e da alocação dos recursos a partir das necessidades das pessoas e populações”.
Pesquisadores referenciados, que têm como objeto de estudo o neoliberalismo – como David Harvey, Atílio Borón e Francisco Oliveira – apresentam a questão da “inevitabilidade” neoliberal, a consolidação ideológica de que não há outros caminhos políticos, que a prática econômica – Estado mínimo, mercado forte – é a única escolha. Pensar alternativas para a saúde exige um deslocamento: é possível construir um país com justiça social e equidade, e o SUS é a chave.