Por Carolina Niemeyer, Elisa Maria Campos e Thaís Severino da Silva
Embora o SUS seja uma das políticas sociais que mais avançou em termos de descentralização da gestão, os desafios da regionalização da política de saúde no Brasil ainda são muitos e precisam ser discutidos em profundidade. Por isso, o Observatório do SUS, em uma parceria da ENSP/Fiocruz com a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), convidou representantes do executivo, do legislativo, da academia e da sociedade para conversar sobre “Desafios de regionalização e Política de Saúde o Brasil: obstáculos e alternativas”.
O Seminário reuniu cerca de 190 pessoas para refletir sobre dois tópicos principais. O primeiro: quais os maiores desafios do federalismo brasileiro que condicionam a regionalização da política de saúde? O segundo: quais os alcances e limites das estratégias de regionalização? Além disso, buscou formular proposições para o aprimoramento da regionalização na saúde.
Com duas mesas no período da manhã e grupos de trabalho à tarde, o seminário debateu as relações intergovernamentais e governança nas regiões, o Conselho da Federação e seus possíveis impactos para o setor saúde, a relação entre as regiões de saúde e as políticas nacionais, os novos arranjos organizacionais com base regional, o acesso à atenção especializada nas regiões de saúde, o financiamento, dentre outros.
O processo de governança da saúde no Brasil é complexo. A professora Ana Luisa Viana, coordenadora da plataforma Regiões e Redes e professora aposentada da USP, apontou como um dos principais desafios a necessidade da criação de autoridade/inteligência regional compartilhada, a partir de uma nova ideologia de integração e cooperação e de nova base técnica e tecnológica. Entretanto, a última legislação sobre o tema foi o decreto 7.508 de 2011 e, na sequência, houve uma tentativa de organizar e fortalecer a regionalização em saúde com o Contrato Organizativo da Ação Pública da Saúde – COAP, mas a proposta não vingou.
Hoje, segundo a professora, um ponto importante é pensar sobre a questão da autoridade: quem decide? Já contamos com algumas instâncias decisórias, redes de serviços e estruturas governamentais, mas o federalismo brasileiro apresenta “pontos cegos” que levam a vazios de autoridade. Uma solução seria um novo arranjo com maior protagonismo estadual. Recentemente, foi criado o Conselho da Federação, órgão permanente para cooperação interfederativa nos níveis federal, estadual, distrital e municipal, oficializado em 25 de outubro de 2023. Segundo, Eliane Licio, secretária executiva do Conselho da Federação (SRI/PR), trata-se de um colegiado tripartite nacional para promover o desenvolvimento econômico sustentável e a redução das desigualdades sociais e regionais. Ele tem o potencial de fortalecer as instituições democráticas e estimular iniciativas de cooperação para o desenvolvimento do país, incluindo as políticas de saúde.
O professor associado do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais, José Ângelo, falou sobre duas estratégias principais utilizadas no SUS como mecanismo de integração regional: os consórcios intermunicipais e a pactuação regional regulada por normas nacionais. No primeiro caso, são estabelecidos acordos voluntários horizontais em que municípios compartilham a produção e distribuição de serviços de interesse comum. No segundo, municípios polo e municípios referenciados pactuam metas físicas e financeiras para atendimento em média e alta complexidade.
Segundo o professor, consórcios são soluções para alguns problemas específicos de acesso, mas não substituem uma política de regionalização mais ampla, pois municípios não associados e inadimplentes são excluídos do processo, violando o princípio de universalidade e integralidade do SUS, por não oferecerem atendimento a todos os cidadãos e apresentarem um portfólio restrito.
A deputada federal Ana Cristina Pimentel, da Frente Parlamentar em Defesa do Sistema Único de Saúde, que participa da discussão da PL 196/2020 sobre normas gerais de contratação de consórcios públicos concorda com a proposta dos consórcios, mas tem restrições ao atual PL em tramitação, alertando sobre outro risco: “A forma como o projeto estava não respondia aos desafios que nós entendemos que existem dentro do SUS. Na verdade, o projeto hoje cria uma quarta instância da federação para definição e pactuação, além das que já temos (municipal, estadual, federal). A nossa proposição é que os consórcios são importantes, precisam ter uma estabilização legislativa, mas acreditamos que eles devem ser instrumentos de execução, seguindo as instâncias que nós já temos.”
As questões das desigualdades regionais do Brasil também foram lembradas. Apesar do aumento da oferta de serviços básicos, o acesso e a integralidade da atenção ainda são desafios, especialmente em serviços mais especializados e de maior custo/densidade tecnológica, considerando que cerca de 70% dos municípios brasileiros têm menos de 20 mil habitantes e que o acesso a esses serviços muitas vezes é desigual.
Essa desigualdade de ofertas de serviços ocorre sem que haja absorção das incertezas de riscos gerados pelas barganhas e conflitos distributivos entre municípios “exportadores” e “importadores” e a constituição de uma autoridade regional capaz de pensar e planejar a região como um todo, monitorar o acesso e adotar medidas compensatórias.
Na mesma data do evento (18/10/2023), o Ministério da Saúde publicou a nova Política Nacional da Atenção Especializada em Saúde (PNAES). A PNAES pretende articular uma intervenção sistêmica, integrando redes e regiões, equipes de serviços e os profissionais com os usuários. Nasce com uma proposta de financiamento específico para tentar considerar as diferentes regiões, a formação e o provimento de profissionais, a contratualização e a avaliação da atenção especializada.
O secretário de atenção especializada do Ministério da Saúde, Helvécio Miranda Magalhães Júnior, presente no evento, falou sobre regionalização no contexto da PNAES. Considerou os avanços em sua organização, a partir de 2011, com as redes de atenção, mas apontou que ainda não houve o enfrentamento mais amplo do modelo e forma de organização da atenção especializada, expressos na persistência do pagamento por procedimentos. Segundo ele, muitos serviços públicos e filantrópicos estão no limite de sua capacidade e a baixa oferta e má distribuição de especialistas, sobretudo médicos, resulta em vazios assistenciais. Assim, seria necessário um novo modelo de contratação e mobilização da oferta de serviços privados assim como mudança de gestão e da performance dos serviços públicos estatais.
Como análise de caso já implementado, Roberta Sampaio, representante da Bahia, compartilhou a experiência do estado com os consórcios verticais interfederativos. Segundo Roberta, a estratégia adotada pela Bahia seguiu em grande parte o modelo escolhido pelo estado do Ceará.
O processo para implementação dos consórcios foi precedido pela realização do Planejamento Regional Integrado (PRI) e por reforma administrativa na Secretaria Estadual de Saúde. Essa estratégia proporcionou um arranjo organizado pelo estado, buscando superar exatamente os gargalos nas regiões, com sua ativa intervenção e organização. A Bahia implantou 24 consórcios de saúde, abrangendo 26 policlínicas em novembro de 2023, incluindo 2 em Salvador. Dos 417 municípios, 411 encontram-se consorciados, tendo sido realizados mais de 4,5 milhões de atendimentos.
Por fim, com o avançar dos debates, ficou claro que os desafios da regionalização não se separam de outros grandes temas da construção do SUS, como por exemplo, a questão do financiamento e precarização dos vínculos trabalhistas existentes hoje.
Além disso, algumas proposições foram indicadas para avançar a pauta de regionalização, como por exemplo: retomar o fortalecimento do processo de regionalização com indução e coordenação pelo governo federal, fortalecer o papel das secretarias de estado como autoridade sanitária, coordenadoras e facilitadoras do processo de regionalização em seus territórios; fortalecer atividades de planejamento regional; garantir a estrutura necessária para a constituição da rede regionalizada, tais como capacidade técnica das equipes, sistemas e bancos de informação, transporte sanitário; entre outras.
Confira o conjunto de propostas no relatório técnico produzido a partir do seminário.
Organizado pelo Observatório do SUS em parceria com a Abrasco, o seminário “Desafios da Regionalização da Política de Saúde o Brasil: obstáculos e alternativas“ foi realizado em 20 de outubro de 2023 no auditório da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz). O encontro foi o segundo da série de três seminários temáticos sobre os desafios do SUS.
Expositores:
- Ana Cristina de Lima Pimentel
Deputada Federal, Frente Parlamentar em Defesa do Sistema Único de Saúde - Ana Luíza D’Ávila Viana
Coordenadora da plataforma Conexões e Redes e professora aposentada da Universidade de São Paulo (USP) - Helvécio Miranda Magalhães Júnior
Secretário de Atenção Especializada do Ministério da Saúde - Elaine Licio
Secretária Executiva do Conselho da Federação da Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República (SRI) - José Ângelo Machado
Professor Associado do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) - Roberta Sampaio
Coordenadora Executiva de Fortalecimento do SUS da Secretaria da Saúde do Estado da Bahia
Coordenadoras das mesas temáticas:
- Rosana Onocko Campos
Presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) - Mariana Vercesi de Albuquerque
Pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz)
Assista à transmissão completa das palestras do seminário