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Consórcios e regionalização do SUS: caminhos para uma gestão cooperativa

Por Observatório do SUS

Enquanto alguns estados consolidam modelos de cooperação bem-sucedidos, outros ainda buscam alternativas viáveis. Como esses arranjos podem fortalecer a saúde pública sem ampliar desigualdades regionais?

A regionalização da saúde no Brasil tem se consolidado como um dos pilares fundamentais para garantir acesso equitativo e eficiência na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS). No centro desse debate, os consórcios públicos emergem como uma estratégia essencial para fortalecer a governança regional e aprimorar a prestação de serviços especializados. Esse foi o foco do Seminário Nacional de Consórcios Públicos e Regionalização do SUS, promovido por uma rede de instituições e pesquisadores que há anos estudam esse modelo de cooperação federativa.

O evento reuniu especialistas, gestores, pesquisadores e representantes de consórcios de diversas regiões do país para analisar os desafios e as potencialidades desse arranjo organizacional. Entre os temas debatidos, destacaram-se a governança cooperativa, os mecanismos de financiamento, os impactos na equidade regional e as possibilidades de aprimoramento normativo.

Os consórcios públicos de saúde começaram a ganhar força no Brasil na década de 1990, inicialmente como uma resposta às dificuldades enfrentadas pelos municípios para garantir atendimento especializado à população. Com o avanço da municipalização do SUS e a crescente demanda por serviços de média e alta complexidade, os consórcios tornaram-se uma alternativa viável para otimizar recursos e ampliar o acesso.

A experiência do Ceará e da Bahia foi destacada como referência na implementação dos consórcios interfederativos, que articulam estados e municípios para garantir uma estrutura mais robusta de atendimento especializado. Segundo Luiz Eugênio Portela, diretor do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA, a experiência baiana tem demonstrado que os consórcios podem fortalecer a regionalização, desde que sejam bem planejados e tenham um financiamento sustentável.

No entanto, a expansão desses consórcios pelo país ainda ocorre de forma desigual. Conforme apresentado no seminário, a maior parte das experiências está concentrada no Sul e Sudeste, regiões com maior tradição na cooperação intermunicipal. Nos estados do Norte e Nordeste, os desafios são maiores, principalmente pela necessidade de adaptação às realidades locais e pela limitação de recursos financeiros.

Um dos principais entraves apontados no evento foi a fragmentação da governança regional. Muitas vezes, os consórcios operam sem uma integração clara com as estruturas formais de gestão do SUS, como as Comissões Intergestores Regionais (CIRs) e as Secretarias Estaduais de Saúde. Segundo dados apresentados no painel, cerca de 50% dos consórcios não coincidem com as regiões de saúde oficialmente estabelecidas, o que gera dificuldades na articulação e no planejamento integrado.

A participação dos secretários municipais de saúde nos consórcios também varia significativamente. Em muitos casos, eles são apenas convidados esporádicos das assembleias gerais, o que enfraquece sua capacidade de influenciar as decisões. Além disso, a presença dos consórcios nas instâncias decisórias estaduais ainda é limitada: apenas 15% participam regularmente das Comissões Intergestores Bipartites (CIBs), e 52% sequer têm assento nessas reuniões.

Esse desalinhamento entre os consórcios e os mecanismos formais de governança do SUS pode comprometer a efetividade da regionalização. Como destacou Luciana Dias Lima, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública, é fundamental criar mecanismos de coordenação mais eficazes para evitar que os consórcios se tornem estruturas paralelas, operando à margem das políticas regionais.

Outro ponto central debatido foi a sustentabilidade financeira dos consórcios. Apesar de serem reconhecidos como ferramentas importantes para a organização da atenção especializada, muitos ainda enfrentam dificuldades para garantir financiamento estável e previsível.

O contrato de rateio entre os entes consorciados foi apontado como um mecanismo fundamental, mas que ainda apresenta instabilidades. Atualmente, apenas 39% dos consórcios possuem uma parcela fixa de contribuição estabelecida para todos os municípios participantes. Em muitos casos, o rateio ocorre com base em despesas variáveis, o que dificulta a previsibilidade financeira e compromete a continuidade dos serviços.

Uma inovação apresentada no seminário foi o modelo adotado na Bahia e no Ceará, onde uma parte do ICMS estadual é retida para financiar os consórcios interfederativos. Essa estratégia tem garantido maior estabilidade financeira e permitido a expansão da oferta de serviços especializados, como policlínicas regionais. No entanto, a implementação desse modelo exige um esforço de negociação política e a criação de dispositivos legais que garantam sua operacionalização.

O debate sobre equidade na distribuição dos serviços de saúde também foi um tema central. Os consórcios têm o potencial de reduzir desigualdades regionais, especialmente ao viabilizar o acesso de municípios menores a serviços de maior complexidade. No entanto, a concentração desses arranjos em algumas regiões do país evidencia que ainda há desafios a serem superados.

Além disso, a regionalização precisa ser acompanhada de um fortalecimento institucional dos municípios, garantindo que eles tenham capacidade técnica e administrativa para participar ativamente da gestão dos consórcios. Como ressaltado por Maria da Conceição de Souza Rocha, presidente do Conselho Nacional dos Municípios do Rio de Janeiro, muitos municípios de pequeno porte ainda enfrentam dificuldades para se organizar e atuar de forma estratégica dentro desses arranjos.

Outro ponto relevante foi a necessidade de maior transparência e controle social na gestão dos consórcios. Foram discutidos mecanismos para garantir que as decisões tomadas sejam amplamente divulgadas e que a sociedade possa participar do monitoramento dos serviços prestados.

O seminário deixou claro que os consórcios públicos de saúde são uma peça-chave na estruturação da regionalização do SUS, mas ainda enfrentam desafios significativos. Para que esses arranjos cumpram seu papel de forma mais efetiva, é necessário aprimorar sua integração com as instâncias formais de governança, fortalecer seus mecanismos de financiamento e garantir maior equidade na sua distribuição pelo país.

O evento reforçou a necessidade de novas políticas públicas que incentivem a criação e o fortalecimento dos consórcios, garantindo que eles se tornem ferramentas estratégicas na consolidação de um SUS regionalizado, eficiente e acessível para toda a população.

Ana Luiza d’Ávila Viana é economista formada pela Universidade Cândido Mendes, mestre e doutora em economia pela Unicamp, professora aposentada da Universidade de São Paulo (USP), pesquisadora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA) e coordenadora da Plataforma Região e Redes.

Davi Carvalho é jornalista especializado em comunicação pública e científica, master em comunicação institucional, atua como diretor de comunicação e relacionamentos da Plataforma Região e Redes.

Por Davi Carvalho e Ana Luiza d’Ávila Viana (Plataforma Região e Redes)


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