Das singularidades ao salto tecnológico: especialistas debatem China no capitalismo contemporâneo
Por Observatório do SUS“E a China?”. Em debates públicos sobre imperialismo e relações internacionais, é comum ouvir essa pergunta da plateia, até porque o gigante país da Ásia Oriental incita dúvidas e curiosidade. Mas, afinal, o que é a China dentro desse sistema global de Estados? A indagação inspirou a equipe do projeto ‘Implicações das Tecnologias Digitais para os Sistemas de Saúde’, apoiado pela Estratégia Fiocruz para Agenda 2030 e vinculado à Iniciativa Saúde Amanhã, a promover o encontro ‘China em debate’. A atividade, realizada no dia 1° de novembro na ENSP, contou com a parceria do Observatório do SUS. O objetivo foi promover debates entre grupos de pesquisa da Escola e pesquisadores que são referências no assunto.
Representando a Direção da ENSP no encontro, o vice-diretor da Escola de Governo em Saúde e coordenador do Observatório do SUS, Eduardo Melo, iniciou o debate parabenizando a Iniciativa Brasil Saúde Amanhã, assim como a realização da atividade sobre o tema. Ele lembrou que a ENSP tem uma estreita e forte parceria com a Iniciativa, e afirmou que a Escola enxerga, com muita clareza, a importância estratégica de alguns fenômenos, entre eles, a transformação digital. Melo destacou, ainda, que essa temática foi debatida em um seminário realizado em 31 de outubro, organizado pelo Observatório do SUS, em parceria com a equipe do projeto ‘Implicações das Tecnologias Digitais para o Sistema de Saúde’. “Abordamos esse tema no evento, pois acreditamos que esse processo da transformação digital traz potencialidades, mas também desafios que precisam ser discutidos”, afirmou.
O vice-diretor chamou a atenção para a necessidade e importância do debate sobre a China. “Conhecemos pouco esse país e temos clareza de sua importância geopolítica e do que está em jogo, atualmente, em um campo mais abrangente. No entanto, há necessidade de se compreender melhor o regime chinês, bem como sua dinâmica econômica e tecnológica. A compreensão do que acontece na China, atualmente, é fundamental para que possamos, tanto do ponto de vista macro, como da Saúde, identificar algumas pautas nesse debate, sendo umas delas a saúde digital. Nesse encontro, também podemos descobrir possíveis parcerias, ancoradas na cooperação estruturante e sul-sul. A Direção da ENSP tem todo o interesse em apoiar e integrar essas iniciativas”, destacou.
Em seguida, o coordenador executivo da Iniciativa Brasil Saúde Amanhã, Leonardo Castro, falou, brevemente, sobre o projeto ‘Implicações das Tecnologias Digitais para os Sistemas de Saúde’, criado em 2019 no escopo da Iniciativa. “Mais recentemente, iniciamos uma pesquisa sobre estratégias nacionais comparadas de saúde digital, que também olha para o cenário regulatório global. Evidentemente, a China é, para nós, um dos atores que define esse campo da economia digital e saúde global”, disse.
O tema do debate da manhã foi ‘A experiência chinesa e o capitalismo contemporâneo’. Participaram da mesa os pesquisadores Renildo Souza, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Esther Majerowicz, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Luiz Felipe Osório, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Carlos Medeiros, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), além do coordenador executivo da Iniciativa Brasil Saúde Amanhã, Leonardo Castro.
O debate iniciou com uma apresentação sobre a história do capitalismo contemporâneo, marcada por eventos como as Revoluções Industrial e Francesa e, ainda, pelo Imperialismo. Em seguida, foi abordada, entre os pontos centrais nessa reflexão sobre a China, a competição do país asiático com os Estados Unidos, marcada pela disputa por tecnologia. Ao contrário do que ocorreu na Guerra Fria, a competição atual não estaria ancorada em modelos de sociedade opostos.
Em uma tentativa de compreender, mais profundamente, como a China, ao contrário dos antigos países da União Soviética, se tornou uma superpotência tecnológica, os palestrantes direcionaram o debate para além do usual enfoque no aspecto geopolítico da ascensão chinesa, o qual, segundo os especialistas, pode ser explicado pela crescente polarização geopolítica e geoeconômica, especialmente entre o país asiático e os Estados Unidos.
Nesse sentido, um dos fatores pontuados no debate foi a transição da China para o capitalismo como um processo politicamente induzido pelo Partido Comunista Chinês, o qual conformou um estado de caráter desenvolvimentista, caracterizado pelo monopólio desse poder político partidário e por sua forte penetração sobre os interesses econômicos. Nesse contexto, foi apontada também a alteração na própria natureza do Estado e do Partido Comunista Chinês, caracterizada por “uma reconciliação do próprio Estado com os processos socioeconômicos que ele coloca em marcha”.
Outro destaque foi a mercantilização da força de trabalho na década de 1990 na China, que marcou o estabelecimento do capitalismo no país. O processo de exploração de baixos salários, somado a fatores como as longuíssimas jornadas de trabalho, a expropriação de terras e a extração do excedente do campesinato, foi levantado, pelos especialistas, como uma possível causa que levou a China a se tornar, hoje, uma grande potência tecnológica. A explicação é que esse processo teria culminado no acirramento da luta de classes chinesa, entre os anos 2000 e meados de 2010, incentivando o país a adotar “outra estratégia de acumulação, que visa, por um lado, o desenvolvimento de tecnologias autóctones e, por outro, a criação mínima de um estado de bem-estar, mesmo que moderado e liberal”.
Conforme apontado no debate, a partir dessa mudança de estratégia de acumulação, houve uma reestruturação da relação com os capitais estrangeiros. Sendo assim, a luta de classes chinesa teria provocado uma influência nas relações interestatais, principalmente entre China e os Estados Unidos, provocando, assim, uma competição entre Estados capitalistas pela hegemonia política nas relações interestatais. Dessa forma, conforme pontuado no debate, a China, “ao expandir e acumular seu capital em escala internacional, reproduz tendências da acumulação de capital e de polarização de riqueza, que estão colocadas sob o ponto de vista econômico, mas que também podem ter desdobramentos políticos”.
A história que leva à expansão internacional da China, no entanto, vem acompanhada de uma contradição, conforme apontado no debate: ao mesmo tempo em que o país asiático consegue romper com sua condição periférica, aumentando a concorrência intercapitalista e interestatal, por outro lado, ele reproduz os mecanismos econômicos que reforçam e sustentam as relações centro-periferia.
Encerrando o evento, a mesa da tarde incitou um debate sobre ‘A China e a economia digital’. A atividade contou com a participação das pesquisadoras Adelyne Mendes, do Departamento de Administração e Planejamento em Saúde (DAPS/ENSP), e Carmem Petit, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC Rio), além dos pesquisadores André Lobato, do Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris/Fiocruz), e Marco Nascimento, do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz Antonio Ivo de Carvalho (CEE/ENSP).
Por Danielle Monteiro (Informe ENSP)