Especialistas analisam desafios da regionalização do SUS em congresso da Abrasco
Por Observatório do SUSMesa no 14º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva destacou a tensão entre autonomia local e coordenação nacional, o subfinanciamento crônico e a necessidade de uma autoridade sanitária regional.

Durante o 14º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva (Abrasco), realizado em Brasília, especialistas se reuniram na mesa “Regionalização e Governança: caminhos para fortalecer o SUS” para analisar os impasses e as possibilidades da organização territorial do sistema de saúde brasileiro. O debate, moderado pela professora Silvia Gugelmin (UFMT), contou com as apresentações de Ana Luiza D’Ávila Viana (USP), José Angelo Machado (UFMG) e Eduardo Melo, vice-diretor da Escola de Governo em Saúde e coordenador do Observatório do SUS da ENSP/Fiocruz.
A mesa partiu de um contexto global, apresentado por Ana Luiza D’Ávila Viana, que define a governança como uma coordenação negociada, em contraste com antigos modelos hierárquicos. Ela destacou as tensões fundamentais que desafiam sistemas descentralizados, como o equilíbrio entre autonomia local e autoridade central, e entre descentralização e solidariedade para evitar desigualdades regionais. A pesquisadora apresentou resultados de uma revisão sistemática da literatura (2020-2024), apontando fatores críticos para governança eficaz: coordenação, financiamento equitativo, transparência e liderança técnica. Ana Luiza ressaltou que eficácia da governança depende da construção de um sistema que promova confiança institucional e colaboração.
A análise de experiências internacionais, como a descentralização coordenada do Canadá e os sistemas coesos da Alemanha e Espanha, serviu de contraponto para discutir a realidade brasileira e latino-americana, marcada por assimetrias e fragmentação.
José Angelo Machado abordou o tema pela perspectiva da ação coletiva e dos custos de transação. Ele argumentou que a regionalização do SUS, ao criar regiões de saúde grandes e heterogêneas, transferiu o problema da escassez de financiamento* para os municípios, gerando um conflito distributivo. “Municípios-polo arcam com custos de negociação e de serviços de média e alta complexidade, enquanto municípios menores buscam soluções informais, fora da oficialidade do SUS”, explicou. Para ele, dois pontos são fundamentais: a revisão do financiamento, cujo incremento deve ser responsabilidade dos estados e da União, e a construção de uma autoridade sanitária regional com poder decisório real.
O olhar das redes e a conjuntura política
Eduardo Melo, vice-diretor da Escola de Governo em Saúde e coordenador do Observatório do SUS da ENSP/Fiocruz, complementou a análise a partir da experiência com as Redes de Atenção à Saúde (RAS). Segundo ele, a regionalização é condicionada por múltiplas dimensões articuladas: o financiamento, o pacto federativo, a dinâmica política e o próprio modelo de desenvolvimento regional.

Ele fez um panorama das iniciativas das últimas décadas, como o Contrato Organizativo de Ação Pública (COAP) que, embora tenha representado uma intencionalidade importante, esbarrou na ausência de financiamento vinculado, e a expansão dos consórcios intermunicipais, hoje em torno de 300 no país. “Os consórcios têm peso político e uma dimensão inegável, mas são focalizados por natureza e não necessariamente comprometidos com a integralidade do cuidado”, ponderou.
Eduardo também chamou atenção para o Projeto de Lei dos Consórcios, que prevê novas modalidades de repasse direto, e para o impacto das emendas parlamentares sobre a capacidade de indução de uma política nacional de regionalização. Defendeu ainda a necessidade de um olhar atento aos atores privados e às suas dinâmicas de mercado nos territórios, que interferem diretamente na organização regional do SUS.
Ao avaliar iniciativas recentes, como o programa “Agora Tem Especialistas”, afirmou que se trata de uma agenda inovadora para a atenção especializada e que pode se constituir como um vetor importante para a regionalização, inclusive porque depende dela também para se efetivar.
Vácuo estratégico e o caminho a seguir
No debate, Ana Luiza Viana trouxe o conceito de “vácuo estratégico”, referindo-se à falta de um grande desenho de futuro e de transformação institucional para o SUS. “Vemos iniciativas boas e isoladas, mas não a grande estratégia acompanhada de políticas institucionais transformadoras, como ocorreu com a Estratégia Saúde da Família”, analisou. José Angelo Machado reforçou a importância da interlocução entre pesquisa e política.
Eduardo Melo ressaltou que mesmo as grandes cidades precisam se reconhecer como parte de regiões de saúde e superar uma visão autocentrada. Para ele, mesmo dentro das metrópoles há uma necessária governança regional compartilhada, que deve ser construída de forma cooperativa, respeitando fluxos assistenciais e necessidades dos territórios do entorno.
Os palestrantes convergiram na defesa de que superar os desafios da regionalização exige enfrentar, simultaneamente, o subfinanciamento crônico, a fragmentação federativa e a construção de mecanismos de governança regional legítimos e com autoridade. A mesa reforçou que a regionalização não é um fim em si, mas um meio essencial para viabilizar os princípios de universalidade, equidade e integralidade do SUS, demandando investimento contínuo em cooperação política, capacitação técnica e legitimação social.
O Observatório do SUS segue acompanhando e produzindo análises sobre o tema. Nas falas de Eduardo Melo e José Angelo, ao longo da mesa, foi citado o seminário realizado em parceria com a Abrasco, que resultou no relatório Desafios da Regionalização, disponível aqui.

Por Júlia da Matta
Fotos: Lucas Moratelli
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