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Especialistas e gestores avaliam a capacidade de resposta do SUS a emergências sanitárias

Por Observatório do SUS

Observatório do SUS, da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/Fiocruz), promoveu, na manhã desta segunda-feira (3 de novembro), o seminário online “Entre aprendizados e desafios: o SUS está preparado para novas emergências sanitárias?”. O evento reuniu especialistas em saúde pública, pesquisadores e gestores municipais para um debate urgente e necessário: como o Sistema Único de Saúde pode se preparar e responder de forma mais eficaz, ágil e resiliente às emergências sanitárias do presente e do futuro.Transmitido ao vivo pelo canal da ENSP no YouTube, o seminário foi estruturado em duas mesas temáticas. A primeira concentrou-se na análise dos cenários macro, nos desafios estruturais enfrentados pelo sistema e nas estratégias nacionais em curso. A segunda mesa promoveu o compartilhamento de experiências concretas de municípios que atuaram na linha de frente de crises recentes, evidenciando, na prática, tanto a potência quanto as vulnerabilidades do Sistema Único de Saúde (SUS).

SUS em alerta: entre desafios persistentes e eventos agudos

Coordenada por Andréa Sobral, vice-diretora de pesquisa e inovação da ENSP/Fiocruz, a primeira mesa partiu da pergunta-título do seminário e chegou a uma síntese compartilhada pelos debatedores: o SUS está, em parte, preparado e, em parte, não. A preparação é uma equação complexa. Elementos fundamentais já existem e demonstraram sua força em crises recentes, mas persistem fragilidades e insuficiências que limitam a capacidade de resposta do sistema diante de emergências de maior escala e complexidade.

Deisy Ventura, professora titular da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP), deu o tom da discussão ao introduzir o conceito de “evento agudo sobre bases crônicas”, cunhado por Paul Farmer. “De um lado, temos um tesouro que a ampla maioria dos países não tem: a universalidade do acesso, consagrada na nossa Constituição. Temos também uma massa crítica de sanitaristas com experiência internacional e uma comunidade epistêmica muito sólida”, afirmou.

Por outro lado, Ventura alertou para elementos que fragilizam o sistema: o subfinanciamento, que é crônico e histórico, e os mais recentes, oriundos da pandemia de Covid-19, que são a desvalorização das autoridades sanitárias, a desinformação e o ecossistema de ataques à ciência. “A Covid-19 mostrou que toda uma estrutura de resposta pode ser destruída ou boicotada muito rapidamente”, destacou. É importante que esse tema seja tratado de forma permanente, não entrando e saindo de pauta apenas nos momentos que eles acontecem.

Como solução, ela defendeu com urgência a criação de uma Política Nacional de Emergências de Saúde Pública por meio de lei federal, cujos debates vem sendo conduzidos pelo Ministério da Saúde com a contribuição de especialistas externos. Ressaltou que essa política deve refletir as singularidades brasileiras, como o papel central do SUS e a proteção social, a necessidade de fortalecimento das autoridades sanitárias e de superar a fragmentação e limites dos instrumentos atuais, a massa crítica existente hoje no Brasil sobre esse tema, a superação de paradigmas estrangeiros, especialmente biomédicos e securitários e ainda, a importante experiência adquirida com a pandemia da COVID-19.

Deisy reforçou que a ausência desse marco legal traz muitos riscos, não apenas aqueles inerentes às emergências, mas sobretudo às heranças que elas deixam de forma permanente, crônica, como é foi o caso da Covid-19. Finalizou ressaltando que a marca da Política Nacional de Emergências de Saúde Pública Brasileira deve ser a governança democrática e a proteção social, que fazem a diferença no SUS.

Eduardo Hage, pesquisador da Fiocruz Brasília e consultor da OMS, reforçou a análise contextual, destacando que as emergências ocorrem em um cenário global de desigualdades profundas, instabilidade política e emergência climática. “As populações vulneráveis sofrem maior exposição e têm o impacto das emergências ampliado. A redução das desigualdades é parte fundamental da preparação”, afirmou. Hage também projetou um futuro de emergências cada vez mais complexas, simultâneas e em cascata, exigindo que o SUS desenvolva sistemas capazes de responder ao inesperado, utilizando-se de inteligência artificial e vigilância ativa, mas sem perder de vista a centralidade do fortalecimento estrutural do sistema.

Carlos Machado, pesquisador da ENSP e coordenador do Centro de Estudos e Pesquisas em Emergências e Desastres em Saúde (Cepedes/ENSP/Fiocruz), trouxe a lente das mudanças climáticas para o debate. Usando o exemplo dos eventos extremos no Rio Grande do Sul em 2024, ele ilustrou como desastres climáticos se sobrepõem a outras emergências, como epidemias de dengue e síndromes respiratórias. “Não estamos diante do fim do mundo, mas do fim do mundo como concebemos. Precisamos olhar para o filme, e não para fotografias isoladas dos eventos. O sistema de saúde é um só e deve ser pensado numa perspectiva multirriscos”, defendeu. Machado alertou que, apesar de respostas exemplares, os impactos de médio e longo prazo na saúde das populações afetadas ainda são negligenciados.

Respostas que inspiram: O SUS nos territórios

Coordenada por Adelyne Pereira, pesquisadora da ENSP/Fiocruz, a segunda mesa mostrou a face concreta do SUS em ação. Gestores de três realidades distintas compartilharam lições aprendidas e inovações implementadas em suas redes.

Daniel Soranz e Valéria Saraceni, secretário municipal de saúde e coordenadora adjunta do Centro de Inteligência Epidemiológica do Rio de Janeiro, respectivamente, apresentaram um modelo de gestão baseado em dados em tempo real. Eles detalharam a criação do Protocolo de Enfrentamento ao Calor Extremo, que é um sistema de alerta e resposta rápida que organiza ações conforme níveis de risco climático, visando proteger a saúde da população. A partir dos níveis estabelecidos são disparadas orientações que vão desde a abertura de pontos de hidratação até a suspensão de eventos em dias de calor extremo na cidade. “A análise robusta de dados primários nos permite tomar decisões na resposta a partir de informações concretas”, explicou Saraceni.

Vanessa Magalhães, coordenadora de Planejamento e Educação Permanente em Saúde de Manicoré (AM), trouxe a realidade singular de um município amazonense. Em um município com 48.000 km², acesso apenas fluvial e aéreo, e 230 comunidades ribeirinhas, a saúde é levada por equipes fluviais que enfrentam secas e cheias extremas. “Falar de saúde na Amazônia é reconhecer que as políticas públicas precisam dialogar com os rios, com as distâncias e com os saberes tradicionais”, disse. Ela destacou o protagonismo das comunidades durante a pandemia, que se organizaram em “sentinelas” para isolar territórios, e a importância de tecnologias sociais, como rádios comunitárias, para garantir a comunicação e a adesão às ações de saúde.

Fernando Ritter, secretário municipal de saúde de Porto Alegre (RS), trouxe relatos da experiência traumática das enchentes de 2024, que alagou 1/3 do território da capital gaúcha, incluindo 28 unidades de saúde e um hospital de 300 leitos. “Num sistema em crise, o dinheiro é mandatório, mas a falta dele não pode paralisar a ação. Aprendemos que é crucial ter um centro de operações de emergência bem estruturado, com comando claro e papéis definidos”, relatou. Ritter enfatizou o papel vital da Atenção Primária e dos Agentes Comunitários de Saúde no resgate e acolhimento, e a criação de um comitê permanente de resiliência. Ele também fez um apelo contundente: “Entre a lei e a lama, a gestão do SUS não pode ser paralisada pela burocracia e pelo medo da penalização. Precisamos de um novo pacto com os órgãos de controle para agilidade em situações de crise”.

Fortalecer o SUS para Enfrentar Crises

O seminário deixou claro que a pergunta “o SUS está preparado?” não tem uma resposta simples. A conclusão que se impõe é que o SUS apresenta uma capacidade de resposta razoável e uma resiliência significativa, sustentadas por seus princípios e sua capilaridade territorial. No entanto, enfrenta fragilidades crônicas que limitam seu desempenho diante de emergências sanitárias.

A necessidade de uma Política de Estado para Emergências, que institucionalize os aprendizados, proteja as autoridades sanitárias e garanta financiamento, foi o ponto comum nas exposições. As experiências municipais demonstraram que, quando há gestão qualificada, uso inteligente de dados, articulação intersetorial e, sobretudo, valorização dos trabalhadores e da Atenção Primária, o SUS é não apenas viável, mas transformador.

O desafio que se impõe, portanto, é o de converter as lições extraídas de crises agudas em ações concretas de fortalecimento permanente e estruturante do Sistema Único de Saúde. Trata-se de preparar o SUS para um futuro em que, infelizmente, as emergências sanitárias e climáticas tendem a se tornar cada vez mais recorrentes.

Assista à transmissão completa do seminário 

por Júlia da Matta e Anamaria Schneider


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