No dia 4 de novembro, a mesa redonda intitulada Saúde na Agenda Legislativa reuniu especialistas e parlamentares para discutir o papel estratégico do Parlamento para as políticas de saúde no Brasil. Proposta pelo Observatório do SUS da ENSP/Fiocruz, a atividade integrou a programação do 5º Congresso Brasileiro de Política, Planejamento e Gestão da Saúde, promovido pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
Coordenada por Eduardo Melo, vice-diretor da Escola de Governo em Saúde e coordenador-geral do Observatório do SUS (ENSP/Fiocruz), a mesa redonda contou com apresentações de Ana Cristina de Lima Pimentel, deputada federal, Renato Roseno de Oliveira, deputado estadual do Ceará, e Tatiana Wargas, do Instituto Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz).
Desafios Legislativos e Captura Orçamentária
Renato Roseno abriu a discussão abordando os desafios enfrentados pelas casas legislativas municipais, estaduais e federais em temas relacionados à saúde, meio ambiente e justiça social. Ele destacou a captura orçamentária e alertou para o avanço de agendas pró-ruralistas, como o Código Mineral e propostas de flexibilização ambiental, e seus impactos nos estados.
Roseno citou a lei aprovada no Ceará, que proíbe a pulverização aérea de agrotóxicos, como exemplo de uma vitória alcançada com o apoio de movimentos sociais e instituições como Fiocruz e Inca. No entanto, ele lamentou a persistência de um modelo agroexportador que compromete territórios e afeta a saúde das populações vulneráveis, favorecendo grandes setores industriais com flexibilizações legislativas e benefícios fiscais.
O deputado também discutiu as emendas parlamentares impositivas, explicando como elas, embora destinadas a viabilizar projetos, podem servir para interesses políticos e econômicos particulares, perpetuando um ciclo de poder e controle territorial. Ele defendeu que o debate sobre a gestão pública transcenda análises moralistas acerca das relações entre o público e o privado e examine as estruturas de poder que favorecem a captura das políticas públicas.
Desigualdade e Poder no Congresso
Ana Pimentel, representante da Câmara dos Deputados por Minas Gerais, ofereceu uma análise crítica sobre o panorama político brasileiro, com foco especial na saúde pública e no papel do legislativo. Em sua intervenção, compartilhou os desafios de iniciar um mandato em um ambiente político caracterizado por relações de poder complexas, sublinhando a necessidade de refletir sobre as expectativas para a agenda de saúde no Congresso Nacional.
Pimentel destacou que a estrutura política e eleitoral do Brasil, marcada por desigualdades, tende a favorecer a manutenção dos interesses daqueles já estabelecidos no poder. Observou que as disputas políticas na Câmara frequentemente não refletem diretamente os anseios da população, mas sim os interesses de grupos privilegiados.
A deputada ressaltou a dificuldade de pautar temas como a regulação de agrotóxicos, destacando que a concepção predominante de saúde é fragmentada e descolada das complexidades sociais. Argumentou que é necessário um esforço contínuo para promover discussões de saúde coletiva que levem em conta as condições sociais e econômicas da população, que ainda recebem pouca atenção nos debates legislativos.
Outro ponto abordado por Pimentel foi o uso das emendas parlamentares, que descreveu como instrumentos de poder que podem, ao mesmo tempo, viabilizar projetos essenciais para a saúde e perpetuar desigualdades na distribuição de recursos. Observou que, muitas vezes, a disputa por emendas reflete mais os interesses de barganha política do que um compromisso real com as necessidades da população.
A deputada também discutiu a dinâmica entre o Executivo e o Legislativo, destacando que a posição do Executivo exerce sempre um impacto direto sobre as ações e discursos dos parlamentares. Ela exemplificou com a votação do Programa Mais Médicos, onde, embora deputados oposicionistas apoiassem o programa, seus discursos e votos se alinharam com a oposição ao governo, refletindo a tendência de uma resposta reflexiva à postura do Executivo. Nesse cenário, os deputados não estão necessariamente apresentando suas próprias pautas ou defendendo os debates dos atores sociais que representam, mas agindo em função do posicionamento do Executivo. Além disso, a deputada ressaltou como os deputados frequentemente ocupam estrategicamente a cena pública, desviando o foco das agendas principais do Executivo para questões que buscam constranger o governo. Ela citou as frequentes convocações da Ministra da Saúde para discutir questões de gênero, ressaltando que essa estratégia não só visa desestabilizar a agenda do governo, mas também explora o fato de ela ser mulher em um cargo de alta visibilidade, o que intensifica as pressões sobre sua gestão e adiciona uma camada extra de desafio à sua atuação no cargo.
Pimentel trouxe à tona as desigualdades de gênero enfrentadas pelas mulheres no Congresso, afirmando que essas barreiras vão além da representação numérica e estão profundamente enraizadas na cultura política. Ao ingressar na Câmara, a deputada notou um ambiente predominantemente masculino, onde as decisões são muitas vezes influenciadas por interações fora do espaço institucional, como encontros sociais e eventos informais. Segundo ela, esse “etos” político favorece a manutenção de uma hegemonia tradicional.
Por fim, discutiu as disputas entre a Câmara e o Senado e como essas tensões influenciam a tramitação de medidas provisórias e a distribuição de emendas orçamentárias. Ressaltou que esses aspectos, muitas vezes invisíveis ao público, são fundamentais para a condução e avanço da agenda legislativa em defesa do SUS.
Saúde Pública e Influência do Setor Privado
Tatiana Wargas iniciou sua participação dialogando com as contribuições trazidas pelos demais participantes e agradecendo a oportunidade de abordar um tema de longo envolvimento: a relação entre o legislativo e a saúde pública. Wargas destacou sua experiência acompanhando as discussões legislativas e a relevância de se trazer um enfoque crítico sobre como o Congresso Nacional lida com a saúde pública.
Ela pontuou a distinção entre a saúde, amplamente discutida no Congresso, e a saúde pública, que apesar de ser respaldada pelo sistema universal garantido pela Constituição de 1988, enfrenta desafios históricos, como a aceitação da livre iniciativa privada e a subfinanciamento crônico. Wargas lembrou que, embora o sistema de saúde universal tenha sido fruto de um esforço conjunto que incluiu o Legislativo, a trajetória para sua consolidação envolveu concessões significativas que impactaram sua implementação.
Wargas mencionou que as transformações recentes no Congresso, incluindo a fragilização do poder presidencial e o aumento da dependência do Executivo em negociações políticas complexas e opacas com deputados, refletem um movimento mais amplo de reorganização política que afeta todos os níveis de governo.
A pesquisadora também abordou questões de gênero em sua fala e destacou como essas pautas têm sido tratadas e mobilizadas no cenário político. Tatiana ressaltou que as questões de gênero frequentemente ocupam um lugar instrumental em estratégias políticas e são mobilizadas de maneira seletiva, especialmente em contextos de disputa de poder e fortalecimento de agendas conservadoras.
Outro ponto central de sua exposição foi a influência crescente do setor privado no Legislativo e como a atuação empresarial, particularmente dos empresários da saúde, moldou a agenda parlamentar.
A palestrante concluiu discorrendo sobre como a concentração de poder econômico e informacional, cria um ambiente político onde as pautas progressistas enfrentam desafios crescentes, enquanto a influência de atores bilionários molda as prioridades legislativas, enfraquecendo a atuação em defesa de uma saúde pública integral e universal. Ela destacou o crescimento das pautas conservadoras e a influência do ultraliberalismo, apontando como essas dinâmicas enfraquecem as instituições de poder e transferem o controle para o mercado, concentrado nas mãos de uma elite econômica global.
As dinâmicas políticas, o legislativo e o SUS
Encerrando as apresentações, Eduardo Melo destacou a relevância das questões trazidas pelos palestrantes e ressaltou a importância de suas falas para um entendimento mais amplo da atuação institucional, especialmente no que se refere às pautas da saúde e ao SUS. Melo reconheceu que as contribuições apresentadas possibilitaram uma análise detalhada das dinâmicas políticas e das especificidades do trabalho legislativo, oferecendo uma visão mais robusta dos desafios e das oportunidades para a defesa do SUS no atual cenário político.
Melo sugeriu que é fundamental explorar as “janelas” que estão colocadas para o SUS no cenário atual. Como exemplo, ele mencionou o alto custo e as dificuldades enfrentadas pelos usuários de planos privados, destacando que essas fragilidades do sistema privado podem ser usadas a favor do fortalecimento do SUS.
Ele lembrou, ainda, do programa Mais Médicos como um exemplo de como uma crise pode constituir uma oportunidade para a implementação de políticas públicas no SUS: “O Mais Médicos foi aprovado em 2013 por várias razões, mas, uma delas, é que teve uma grande movimentação da sociedade brasileira e, para poder lidar com aquela situação política absolutamente preocupante que se colocava naquele cenário, essa medida foi possível. O Executivo encontrou ali uma janela para a sua entrada.”
Reunindo os pontos levantados pelos palestrantes, o coordenador do Observatório do SUS enfatizou que a saúde, frequentemente tratada de maneira setorial, está intimamente ligada a questões políticas mais amplas, como a relação entre o Legislativo e o Executivo. Ele sublinhou que essa interação política não pode ser negligenciada, pois é decisiva para a condução das políticas de saúde. Nesse contexto, Melo avalia que é crucial aprofundar a análise sobre como essas interações podem ser direcionadas para fortalecer o SUS, destacando a necessidade de entender a conjuntura política atual e a interconexão das pautas de saúde com os interesses mais amplos da sociedade.
por Júlia da Matta