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O SUS e a Agenda Legislativa Federal

Por Rodrigo Neves e Júlia da Matta

O Observatório do SUS (ENSP/Fiocruz) e a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) promoveram, no dia 13 de fevereiro, o seminário “O SUS e a Agenda Legislativa Federal”. O evento, realizado na Fiocruz Brasília, reuniu especialistas no tema, parlamentares e sanitaristas para debaterem os possíveis impactos que a agenda do Congresso Nacional possui sobre o Sistema Único de Saúde. A programação do evento incluiu a conferência “A Crise no modelo de presidencialismo de coalizão brasileiro”, ministrada pelo cientista político Leonardo Avritzer  e a mesa “O Panorama do SUS na Agenda Legislativa Federal”, com Ana Pimentel, deputada federal, Sonia Fleury, pesquisadora do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (CEE/Fiocruz), e Rômulo Paes de Sousa, presidente da Abrasco. 

A abertura do seminário foi conduzida por Eduardo Melo, vice-diretor da Escola de Governo em Saúde da ENSP/Fiocruz e coordenador do Observatório do SUS. Ele iniciou agradecendo aos participantes presentes e aos espectadores que acompanhavam a transmissão ao vivo pelo canal da ENSP no YouTube. 

O evento contou com a presença de atores estratégicos com ampla trajetória nacional nas políticas públicas no Brasil, incluindo ex-ministro da Saúde, ministra do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e integrantes da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). 

A mesa de abertura foi composta por Rômulo Paes, presidente da Abrasco, Marco Menezes, diretor da ENSP/Fiocruz, e Fabiana Damásio, diretora da Fiocruz Brasília. Em sua fala, Rômulo Paes destacou a importância do evento, ressaltando que ele contribuirá para o processo de monitoramento do legislativo, e enfatizou a necessidade de uma avaliação mais aprofundada do papel do legislativo brasileiro – e mundial – em democracias “em trânsito”.  

Fabiana Damásio destacou que o evento evidencia o que tem se estabelecido como prioridade atual: se aproximar do Congresso Nacional. A diretora da Fiocruz Brasília enfatizou a importância da criação desses espaços de discussão em relação a própria democracia, mas também de projetos de lei que garantam que o SUS irá cumprir com suas funções constitucionais.  

Para Marco Menezes, no complexo momento que vive a política em nossa sociedade, a aproximação e o acompanhamento das ações legislativas são ações estratégicas. O diretor afirmou que a ENSP tem a responsabilidade de fomentar o debate com a sociedade e, consequentemente, com o poder legislativo, ressaltando que as emendas parlamentares são um tema central nessa discussão. Regionalização, Carreiras e Financiamento foram destacados como três pontos nevrálgicos para a agenda legislativa relacionada ao SUS nesse momento, além dos desafios contemporâneos como emergências climáticas, crise hídrica e eventos extremos, sendo relevante o papel da academia nessas discussões frente ao atual fenômeno do negacionismo científico.    

Para aprofundar a análise dos impactos da Agenda Legislativa no SUS, buscamos a perspectiva de Tatiana Wargas, pesquisadora do Instituto Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz) e autora de diversos estudos sobre o tema. Wargas ressalta a importância de identificar não apenas os embates e desafios das políticas públicas de saúde no legislativo, mas também de compreender a dinâmica política brasileira, que vem se reconfigurando significativamente na última década. 

“O modelo de presidencialismo de coalizão, que por décadas organizou nossa política, hoje não garante que o presidente consiga exercer suas prerrogativas da mesma maneira”, analisa Wargas. Ela destaca uma “fragilização importante da capacidade de coalizão do executivo para projetos que defende. O executivo está cada vez mais enfraquecido, e um ponto chave nessa mudança é a discussão do Orçamento, especialmente em torno das emendas parlamentares.” 

A saúde, detentora de um dos maiores orçamentos federais — com uma parcela expressiva atrelada a essas emendas —, torna-se alvo de múltiplos interesses e pressões. “Isso se expressa não só nos projetos de lei que emergem, mas também em como eles são apresentados e debatidos”, explica a pesquisadora. 

Wargas também chama atenção para a instrumentalização de pautas conservadoras como estratégia política no legislativo. “Temas como o aborto são usados para fragilizar o executivo e desviar o foco de outros projetos estratégicos”, observa. Ela reforça a necessidade de monitorar propostas que, mesmo sem uma ligação explícita com a saúde, têm impacto direto no SUS e na saúde da população. Entre esses temas, destaca projetos sobre o uso de agrotóxicos, dignidade menstrual, uso medicinal da cannabis, saúde digital e a regulamentação de comunidades terapêuticas. 

O modelo de presidencialismo de coalizão brasileiro sempre funcionou de maneira bastante complexa e intrincada. Leonardo Avritzer, cientista político, escritor e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), teve como tema central de sua apresentação, a crise nesse modelo de governo, que, segundo ele existiu até o fim do segundo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva. Avritzer destacou que o processo de Impeachment sofrido pela ex-presidente Dilma Roussef, se deu justamente quando a chefe de Estado resolveu enfrentar o aumento do poder legislativo.  

Desde então observa-se um crescimento do poder do legislativo em detrimento do poder executivo, tendo o judiciário, assumido um papel de moderador político, devido a própria conjuntura e ao novo modelo político que vem se formando no Brasil.  

 Leonardo Avritzer destacou que o aumento do poder do legislativo está diretamente relacionado ao “sequestro” do orçamento público por meio das emendas parlamentares, que frequentemente não seguem critérios técnicos nem exigem prestações de contas detalhadas. Essa questão, atualmente sob análise do ministro do STF Flávio Dino, reflete o papel crescente do Judiciário como moderador desse processo.  

Ainda segundo o professor, o que se procura é um mecanismo de controle dessa “fome” do legislativo sobre o orçamento, buscando-se um novo equilíbrio de força sem um arranjo institucional que permita certa governabilidade ao poder executivo brasileiro. 

Para a deputada federal Ana Pimentel, que procurou fazer um breve relato sobre como opera a comissão de saúde da Câmara dos Deputados, da qual é membra titular, as comissões da casa perderam seu papel legislativo, com todos os projetos de lei sendo encaminhados diretamente para votação no plenário. 

Ela acrescentou, alinhando-se à literatura científica sobre agenda legislativa e saúde, que a Comissão de Saúde deixou de discutir temas estruturantes, concentrando-se apenas em questões pontuais e preferindo evitar debates. Segundo a deputada, busca-se tratar e votar apenas temas que gerem consenso, em uma lógica de esvaziamento do debate político.  

Existe, ainda, por parte da comissão, segundo Ana Pimentel, uma vontade de publicização das ações realizadas, em uma lógica que pode ser facilmente notada acessando o site da Câmara dos Deputados e da própria Comissão de Saúde. As agendas públicas são, em geral, trazidas pelo governo federal, o que corrobora novamente os achados em pesquisas sobre o tema.  

O crescente interesse dos parlamentares para compor a Comissão de Saúde – atualmente uma das mais disputadas – acompanhou a expansão dos valores destinados para as emendas orçamentárias. A nova configuração contrasta, segundo a deputada com uma Comissão esvaziada e frequentemente recusada por parlamentares anteriormente. 

Rômulo Paes iniciou sua exposição alegando que está claro que, na atual conjuntura, o poder executivo perdeu uma série de instrumentos de governabilidade para o legislativo. Segundo o presidente da Abrasco, houve uma perda de capacidade de investimento do Ministério da Saúde devido à crescente participação das emendas parlamentares entre as despesas em saúde.  

Identificando um papel exacerbado de fiscalização do Congresso sobre o executivo, Rômulo destacou que, em sua visão, este é o legislativo mais empoderado que já presenciou, alegando ainda que não há correspondência entre o que acontece a nível federal com outras esferas de poder (estadual e municipal).  

Para o presidente da Abrasco, há uma clara tensão entre os setores público e privado da saúde, refletindo os diferentes interesses em jogo, e uma disputa sobre a alocação dos recursos destinados à saúde. Ele também argumenta que as emendas parlamentares enfraqueceram a capacidade do executivo de negociar com partidos e parlamentares, sendo necessário, portanto, reequilibrar esses poderes para garantir a sustentabilidade da democracia brasileira, pois essa descoordenação não é viável a longo prazo.  

Ele também ressaltou, alinhando-se ao que foi dito por Ana Pimentel, que a saúde possui grande relevância devido ao volume de recursos que movimenta, sendo, muitas vezes, o dinheiro, e não os próprios temas a serem debatidos, o principal motivador da atenção dedicada ao setor.  

Sonia Fleury, pesquisadora do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (CEE/Fiocruz), iniciou sua fala tratando da conjuntura mais ampla dessa crise no presidencialismo de coalizão brasileiro. Ela também abordou o momento atual da política mundial, tratado como “era das incertezas”.  

Para a pesquisadora, é preciso fazer uma distinção entre governança e governabilidade, estando a primeira relacionada com as possibilidades institucionais que levam a capacidade do governo executivo de implementar suas demandas. Já a governabilidade seria a validação popular que um representante do executivo consegue a partir de seu resultado eleitoral e índices de aprovação popular. Fleury ponderou que, na conjuntura atual, o governo federal se posiciona numa situação de “entre a cruz e a espada” quando busca realizar medidas de austeridade e, ao mesmo tempo, procura produzir políticas que melhorem a qualidade de vida da população.   

A pesquisadora apontou ainda uma certa falta de ousadia do governo, que estaria nessa situação por trabalhar de modo subordinado ao mercado financeiro e suas regras de austeridade. Para ela, o terceiro governo Lula entrega menos do que prometeu e, apesar dos bons números econômicos, com crescimento do PIB, diminuição do desemprego, e redução da pobreza, é importante recordar, como afirmava a economista Conceição Tavares, que “o povo não come PIB”.  

Sonia criticou a defesa inabalável do arcabouço fiscal e advogou que essa defesa deveria ser politicamente discutida, já que a visão de que o governo não pode gastar mais do que ganha, é ultrapassada inclusive entre os neoliberais. Prosseguiu alertando que enquanto pagamos 1 trilhão de juros de dívida, a diminuição do gasto público gera privatização e precarização, impedindo que políticas públicas de qualidade e em quantidade necessárias sejam implementadas.  

Sobre a crise institucional em si, Fleury alegou que os líderes dos partidos perderam espaço nessa disputa, pois o poder agora se concentra na mão do presidente da Câmara dos Deputados, que é quem decide as emendas. Dessa forma, o presidente Lula não consegue refazer o pacto federativo, apesar de seu trato cordial com os líderes das casas legislativas.  

Para Leonardo Avritzer, a solução para esse desequilíbrio entre os poderes virá da relação entre executivo e judiciário, cabendo ao governo investir em ações de cidadania que levem a um aumento do debate político e de instâncias de interação da população com as questões do Brasil, fortalecendo assim a soberania popular. Enquanto isso, o judiciário funciona como uma contenção ao excesso de poder do legislativo.  

Segundo Rômulo Paes, é preciso um maior entendimento desse momento histórico, em que novos atores sociais se apresentam na equação da política brasileira. A direita está organizada, a exemplo das eleições para conselhos tutelares. E o crescimento da direita em todo o mundo se deve ao fato de ter conseguido trazer para o debate político quem antes não queria saber de política, uma parcela representativa da população.  

A saída para essa situação, de acordo com Sonia Fleury, é aumentar a governabilidade, o atributo societário que legitima, por sua aprovação, o poder e as ações do governo, em contraponto a cada vez mais combalida governança, que seriam esses arranjos políticos institucionais. Falta ao governo, segundo a pesquisadora, maior capacidade de mobilização da população em torno de temas sensíveis e de interesse social. É preciso acessar essa população de forma política através do debate político.  

De acordo com a pesquisadora Tatiana Wargas, o papel das instituições de ensino e pesquisa é traçar estratégias que possibilitem o acompanhamento das pautas sensíveis a saúde e subsidiar com estudos, possíveis análises sobre esses temas. Desta forma, é estratégico acompanhar o debate sobre reforma tributária e financiamento. Em relação as emendas parlamentares, é preciso avançar na construção de estratégias de transparência pública e metodologias para prestação de contas. Wargas defende ainda a importância de acompanhar de perto as pautas das bancadas e Frentes mais influentes no Congresso nacional além de temas relacionados a produção de alimentos, ambiente, segurança pública e gênero. Ela reforça a necessidade de dialogar com movimentos e grupos que atuam no combate às injustiças sociais e históricas e na defesa da saúde, pois é para a população que deveria se voltar a formulação de políticas públicas. 

Organizado pelo Observatório do SUS em parceria com a Abrasco,  o seminário“O SUS e a Agenda Legislativa Federal” foi realizado no dia 13 de fevereiro de 2025, na Fiocruz Brasília, com transmissão pelo Canal ENSP YouTube

Expositores:  

  • Leonardo Avritzer
    Cientista Político, escritor e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) 
  • Ana Pimentel
    Deputada Federal
  • Rômulo Paes
    Presidente da Abrasco
  • Sonia Fleury
    Pesquisadora do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (CEE/Fiocruz)

Moderadores: 

  • Fabiana Damásio
    Diretora da Fiocruz Brasília
  • Eduardo Melo
    Vice-diretor da Escola de Governo em Saúde e Coordenador do Observatório do SUS (ENSP/Fiocruz)

Assista à transmissão completa do seminário

Publicado em: 25 de março de 2025

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