Perspectivas e desafios para o SUS nas eleições municipais são tema em debate do Observatório do SUS
Por Observatório do SUSAs propostas e agendas na área da saúde são fundamentais nos programas eleitorais durante as eleições municipais. Para aprofundar a análise sobre o contexto eleitoral atual e discutir potenciais impactos no sistema de saúde, o Observatório do SUS, que recentemente completou um ano, organizou o webinar “O SUS nas eleições municipais” na sexta-feira, 27 de setembro. O evento reuniu especialistas em ciência política, saúde coletiva e gestão municipal do SUS para um debate sobre o atual cenário político e suas implicações para a saúde pública.
Eduardo Melo, vice-diretor da Escola de Governo em Saúde da ENSP/Fiocruz e coordenador do Observatório do SUS, foi o moderador da sessão, destacando a interrelação entre políticas de saúde e processos políticos mais amplos. Segundo ele, a saúde é uma preocupação central tanto para a sociedade quanto para as instituições brasileiras. Durante sua fala, destacou questões importantes, como o panorama político atual e suas correlações de força, bem como a maneira como a saúde está sendo tratada nos programas eleitorais.
Melo provocou reflexões sobre a relevância das eleições municipais para a gestão do SUS, questionando como os programas eleitorais expressam as verdadeiras intenções dos candidatos. Ele também indagou o que a saúde coletiva considera essencial para o desenvolvimento dos municípios e como essas demandas têm sido tratadas no cenário eleitoral das eleições de 2024.
Ao longo do debate, os palestrantes abordaram os grandes desafios estruturais do SUS e como esses desafios moldam as disputas políticas pela gestão municipal.
Gestão municipal e políticas da saúde
A cientista política Marta Mendes da Rocha, professora da Universidade Federal de Juiz de Fora e coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Política Local (NEPOL/UFJF), destacou a relevância de se debater as políticas locais devido às implicações diretas para a saúde pública.
Marta abordou a dificuldade de grande parte do eleitorado em compreender as atribuições dos três entes federativos — União, estados e municípios — no arranjo federalista do Brasil, especialmente devido à responsabilidade compartilhada pelas políticas sociais, como a saúde. No entanto, a professora destacou que os eleitores têm a capacidade de avaliar as políticas públicas de forma crítica, mesmo diante dessas complexidades.
Ela destacou que a maioria dos municípios brasileiros (88%) possui menos de 50 mil habitantes, o que cria uma dependência considerável de financiamento externo para a efetivação das políticas de saúde. Nessa perspectiva, o governo federal é essencial para garantir recursos, mas a gestão municipal desempenha um papel crucial na execução das políticas.
Em sua análise das eleições, Marta observou que os candidatos costumam explorar a saúde como um tema central em suas campanhas. No entanto, ela alertou para a existência de dois tipos de abordagem política: aqueles que fortalecem o SUS e aqueles que, ao focar em soluções pontuais, contribuem para a mercantilização da saúde.
Também foi ressaltado que as eleições municipais muitas vezes são influenciadas por temas nacionais, especialmente nas grandes metrópoles, mas que, nos pequenos municípios, as questões locais prevalecem. Segundo Marta, isso cria uma oportunidade para os eleitores refletirem e avaliarem as políticas locais a cada quatro anos, criando um momento privilegiado para repensar a cidade.
SUS como política de estado: desafios, impasses e iniciativas
Na exposição de Aparecida Linhares Pimenta, a médica sanitarista, doutora em Saúde Coletiva e assessora do Conselho de Secretarias Municipais de Saúde do estado de São Paulo (COSEMS/SP), iniciou sua apresentação resgatando o debate acerca de o SUS ser tomado, sobretudo pelos chefes do Executivo, como uma política de Estado. Em sua visão, o SUS continua sofrendo os efeitos das mudanças de governo” isso ainda não se consolidou e continua sofrendo os efeitos das mudanças de governo. Nesse ponto, ela destacou as descontinuidades das políticas do SUS nos quatro anos do governo anterior. Nesse ponto, ela destacou as descontinuidades das políticas do SUS nos quatro anos do governo federal anterior.
Observando uma deterioração no debate político nas últimas três eleições municipais e a ascensão de partidos de direita e extrema direita, Aparecida apontou que essa tendência reflete uma característica comum no mundo ocidental, no Brasil como um todo e, em particular, no estado de São Paulo. Segundo ela, a exacerbação das desigualdades sociais e das condições de vida é resultado da hegemonia do neoliberalismo, da financeirização da economia global e da derrota política da social-democracia nos países centrais, impactando diretamente nas nações periféricas.
A assessora também abordou o cenário midiático e comunicacional, analisando o peso do tempo de televisão dos programas eleitorais em meio à popularização das redes sociais, que têm sido utilizadas por muitos políticos como principais plataformas de campanha.
Em relação ao contexto macro do SUS, Aparecida discutiu o impacto do negacionismo durante a pandemia de COVID-19, promovido pelo Governo Federal e pelo Ministério da Saúde, que transferiu responsabilidades e iniciativas para os municípios. Nesse sentido, ela destacou o papel crucial da atuação dos entes subnacionais na mitigação dos efeitos negativos da pandemia. Quanto às melhorias atuais, como a redução da insegurança alimentar severa e da taxa de desemprego, Aparecida enfatizou que, embora sejam significativas, estão longe de resolver as desigualdades sociais no país.
Ela também abordou o financiamento do sistema de saúde, ressaltando o aumento das emendas parlamentares que consomem uma parte significativa do orçamento federal do SUS. A questão da regionalização foi destacada, enfatizando sua importância para a integralidade e os desafios na formação de redes regionais eficazes.
Outro ponto relevante mencionado foi a terceirização dos serviços nos municípios, que, embora não esteja entre os temas predominantes nos debates eleitorais, tem sido discutida nas esferas de gestão e entre os trabalhadores. Ela apontou que a gestão do trabalho se configura como um problema crucial para o SUS, que carece de um enfrentamento adequado, sendo frequentemente abordada sem uma política coerente.
Aparecida comentou ainda sobre as iniciativas do COSEMS/SP para orientar os gestores municipais que estão encerrando suas gestões a promoverem uma transição republicana e democrática. Após campanhas eleitorais polarizadas, é comum haver resistência ao diálogo entre os gestores que saem e os que entram, o que pode prejudicar a continuidade da gestão. Ela destacou que outros COSEMS e o CONASEMS também estão empenhados em iniciativas semelhantes.
Segundo ela, o encerramento da gestão de prefeitos e secretários é o início de um período difícil para os gestores municipais, marcado por inúmeras obrigações legais, como o fechamento de contas e o atendimento às exigências dos órgãos de controle. Além disso, há grande incerteza sobre a permanência das equipes nas Secretarias Municipais de Saúde (SMS), especialmente em cargos de direção.
Ela também ressaltou que, no processo de escolha de novos secretários, muitos são “outsiders” no SUS, alguns oriundos do setor privado ou candidatos a vereador não eleitos. Esses tendem a abandonar rapidamente os cargos, agravando a altíssima rotatividade de secretários municipais de saúde nos últimos anos. Entretanto, Aparecida frisou que há gestores comprometidos com o SUS, que reconhecem a difícil responsabilidade de gerir a saúde pública e permanecem, seja em seus municípios, seja assumindo cargos em outras cidades da região, militando pela continuidade e fortalecimento do SUS.
Eleições municipais e projetos em disputa no SUS
Jairnilson Paim, professor aposentado do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA) e autor do livro “O que é o SUS”, trouxe uma perspectiva histórica e crítica sobre o futuro do sistema de saúde no Brasil. O professor iniciou sua exposição ressaltando a importância dos observatórios de saúde como espaços de análise, debate e intervenção na realidade.
Paim também destacou o contexto global atual, marcado pelo crescimento da extrema direita, pela financeirização da economia e pela redefinição dos Estados nacionais. Segundo ele, as eleições municipais refletem uma disputa entre dois grandes projetos: um democrático e outro autoritário. Nesse cenário, alertou para a ameaça constante à democracia e destacou que a escolha entre esses projetos também implica diferentes orientações econômicas, determinando se o Brasil caminhará para uma sociedade mais inclusiva ou mais excludente, onde os trabalhadores podem ser descartáveis diante das pressões econômicas.
Em relação ao SUS, Paim apontou que existem diferentes concepções do sistema: o SUS previsto na constituição, o que é efetivamente implementado pelos gestores e o SUS idealizado pelo movimento da Reforma Sanitária. Ele defendeu que os candidatos precisam respeitar as leis que regulamentam o SUS, como a Lei Orgânica da Saúde. O professor também destacou a importância de mecanismos institucionais e coletivos de fiscalização, como os Conselhos de Saúde e o Ministério Público, que devem cobrar e supervisionar a implementação de políticas de saúde. Além disso, alertou para a simplificação de debates complexos sobre o SUS, ressaltando que questões densas não podem ser resolvidas com soluções superficiais, especialmente no contexto atual, em que o senso comum muitas vezes predomina.
Sobre a relação público-privado no SUS, muitas vezes vista como ambígua, Paim lembrou que essa relação foi construída em meio a lutas pelo reconhecimento do direito à saúde e pela implementação do Sistema Único de Saúde. Como exemplo positivo, mencionou que o Brasil conseguiu consolidar o SUS em apenas dois anos após a promulgação da constituição, enquanto o sistema de saúde italiano levou 30 anos para ser regulamentado após sua inclusão constitucional.
Paim também defendeu a criação de uma carreira pública para os trabalhadores do SUS, regulada por lei, e a valorização dos sanitaristas. Ele apontou a necessidade de reformar o modelo médico hegemônico e de buscar novos formatos e modelos de administração direta para possibilitar e garantir a efetividade da gestão no SUS.
Por fim, frente aos aspectos críticos e desafiadores, citando Paulo Freire, Paim concluiu sua fala destacando a necessidade de “paciência histórica” em toda democracia, considerando que as mudanças estruturais e sociais demandam tempo e persistência.
Diversidade e reflexões sobre gestão municipal e a agenda das políticas de saúde
No encerramento da sessão, Eduardo Melo, coordenador do debate, destacou a diversidade de perspectivas abordadas, além da representação dos três estados mais populosos e com maior número de municípios — São Paulo, Minas Gerais e Bahia — por meio dos palestrantes.
Melo levantou algumas provocações finais para reflexão. A primeira tratou da visibilidade crescente do SUS durante a pandemia e o reconhecimento ampliado do sistema, contrastando com o fato de a saúde ainda não se consolidar como uma agenda prioritária na dimensão necessária. Outro ponto crucial foi o desafio da regionalização e da construção de redes regionais de saúde, essenciais para acesso ao SUS. Ele também mencionou o aumento das emendas parlamentares e suas possíveis contribuições para o cenário atual. Por fim, abordou o papel dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), categoria profissional que mais teve leis federais aprovadas, materializando o fortalecimento desses atores específicos do campo da saúde.
O debate, disponível no canal da ENSP, refletiu a existência de diversas questões ainda em aberto na agenda da saúde, que ultrapassam o contexto eleitoral, mas são profundamente influenciadas pela atuação dos municípios. Apesar dos desafios estruturais e das limitações de sustentabilidade ao longo do tempo, os governos locais e as experiências dos municípios desempenham um papel central na gestão da saúde.
por Júlia da Matta