Por André Schimidt, Carolina Niemeyer, Elisa Maria Campos, Júlia da Matta e Thaís Severino da Silva
O financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS) é uma condição essencial para garantir o acesso equitativo e universal à saúde no Brasil. Dois elementos-chave são necessários para enfrentar este tema: um aporte de recursos adequado e sustentável e uma alocação estratégica.
Por isso, o Observatório do Sistema Único de Saúde (SUS), da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), em parceria com a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), organizou o seminário “Financiamento do SUS: Equidade, Acesso e Qualidade”. Especialistas de diversas regiões do país, bem como pesquisadores, estudantes, gestores e profissionais da saúde, se reuniram com o propósito de discutir e elaborar estratégias tendo como questão orientadora: como garantir direitos e promover uma sociedade mais justa e menos desigual por meio do financiamento público da saúde?
O debate envolveu membros do governo federal (Ministério da Saúde, da Fazenda, do Planejamento e Presidência da República); instituições de ensino e pesquisa (IPEA, Fiocruz, USP, UFMG, UFES, Unicamp, UFC, UFRN, Faculdade de Campinas); gestão municipal do SUS (secretarias de saúde, COSEMS RJ e SP); instituições de grande destaque na defesa da Saúde Coletiva no país (Abres e Idisa); controle social (COFIN/CNS); e Organização Panamericana de Saúde (OPAS).
A programação do seminário foi dividida em dois momentos: pela manhã, aconteceram duas mesas redondas, abertas ao público e transmitidas virtualmente, que discutiram a arrecadação – quanto e como direcionar financiamento para o SUS – e alocação de recursos, ou seja, como utilizar esses recursos. A parte da tarde foi fechada e dedicada a grupos de discussão compostos por pesquisadores, especialistas, gestores do SUS e representantes do controle social.
A primeira mesa do seminário teve como eixo temático “Dilemas e perspectivas para viabilizar receitas e ampliar a despesa com ações e serviços públicos de saúde” e foi por composta Grazielle Custódio David, doutoranda da Unicamp, Fernando Gaiger Silveira, Técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Ernesto Bascolo, chefe da Unidade de Atenção Primária à Saúde e Serviços Integrados da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) e Sulamis Dain, professora titular aposentada do Instituto de Medicina Social (IMS/UERJ). Os trabalhos foram coordenados por Erika Santos de Aragão, Diretora do Departamento de Economia da Saúde, Investimento e Desempenho do Ministério da Saúde.
“A alocação de recursos como estratégia indutora da reorientação do modelo assistencial do SUS” foi o tema discutido na segunda mesa, mediada por Luciana Dias de Lima, Vice-diretora de Pesquisa e Inovação da ENSP. A sessão contou com palestras de Claudia Pesceto, economista sênior da OPAS, Fabíola Sulpino Vieira, coordenadora de Estudos e Pesquisas de Saúde da Diretoria de Estudos e Políticas Sociais (Disoc/Ipea), e Francisco Funcia, presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES).
No período da tarde, os grupos de trabalho contaram com cerca de 50 participantes. Pesquisadores, gestores e trabalhadores da saúde se dividiram em grupos para discutir alternativas técnico-políticas para a viabilização de um financiamento público adequado e efetivo do SUS.
Essa organização do seminário, com os grupos de trabalho após as palestras, possibilitou adensar as discussões sobre os temas que pautaram as conferências da manhã. Como resultado, será elaborado um relatório consolidando as proposições e os elementos discutidos nas mesas temáticas e nas oficinas dos grupos de trabalho.
Questões importantes foram aprofundadas no que diz respeito às contradições entre o público e o privado: “quem financia e quem consome a despesa pública em saúde?”; “qual o peso do gasto tributário na saúde?”; “existem brechas fiscais e possibilidades para aumentar a arrecadação?”; “quais os impactos do novo arcabouço fiscal e quais as perspectivas da reforma tributária?” O encontro também se dedicou aos temas da vinculação orçamentária; à relação entre modelo de financiamento e modelo de atenção à saúde, e a formas para emprego mais equitativo da despesa pública.
Não há discordância de que o financiamento público significa uma condição sem a qual não conseguimos garantir o acesso universal, com equidade e qualidade nos sistemas de saúde. No Brasil, assim como na América Latina, a segmentação do acesso à assistência à saúde, com a coexistência de um forte setor privado, representa um dilema central para o fortalecimento do sistema de saúde.
Para ilustrar, na Mesa 1 do Seminário, os palestrantes argumentaram que, embora o gasto total em saúde tenha representado 9,4% do PIB em 2017, o gasto no sistema privado predomina no Brasil. Apesar deste cenário, evidenciou-se que o volume de recursos federais para o SUS foi reduzido no período entre 2018 e 2022. Em perspectiva comparada, o país apresenta um dos piores patamares de gasto público em relação a um amplo conjunto de países. Em 2023, a estimativa de gastos permaneceu em torno de 10% do PIB.
Nesse quadro, destaca-se o caráter regressivo do financiamento da saúde e que os baixos patamares das despesas públicas reduzem o potencial redistributivo que favoreceria mais os mais pobres.
A aprovação do novo arcabouço fiscal, ou Regime Fiscal Sustentável, representou um avanço importante no financiamento das políticas sociais, pois significou o fim do teto dos gastos imposto pela Emenda Constitucional n° 95/2016. Contudo, novas e velhas preocupações foram suscitadas. Nesse sentido, os participantes do seminário destacaram que:
i) o novo marco regulatório é baseado no equilíbrio fiscal e não possui cláusulas de escape;
ii) a expansão do gasto com políticas sociais é dependente do crescimento de receitas e vulnerável a crises econômicas;
iii) há existência de restrições importantes aos investimentos;
iv) as regras são complexas e pouco flexíveis.
Os participantes do seminário elencaram quatro aspectos centrais que devem ganhar a atenção para mobilizar o setor saúde em prol da defesa do SUS:
- A necessidade de mudança no foco da reforma, que está essencialmente voltado à tributação indireta, quando deveria haver uma abordagem integrada entre as tributações direta e indireta, sem enfatizar ou dar precedência;
- A necessidade de incorporação de propostas voltadas para a tributação direta, como as tributações de dividendos, fundos exclusivos e offshore;
- A revisão dos critérios de partilha de recursos federais em discussão, porque os atuais ignoram as profundas desigualdades de acesso aos serviços de saúde no território nacional, não havendo previsão de inclusão de critérios essenciais para a condução da política de saúde;
- A reivindicação dos recursos do imposto seletivo – proposta voltada para desestimular o consumo de bens e serviços maléficos à saúde ou ao meio ambiente – para o financiamento do SUS.
O governo federal assume papel fundamental na ampliação e destinação dos recursos públicos para o SUS, considerando o maior peso de sua competência para tributação e a receita disponível, mesmo após as transferências constitucionais. Ademais, a União é a detentora dos instrumentos de política econômica e já se observa o estrangulamento das contas de estados e municípios.
Para uma melhor alocação de recursos no SUS, o governo federal deve ter a capacidade de olhar para o sistema de forma integrada, na perspectiva das redes de atenção, buscando corrigir iniquidades entre os territórios. A alocação de recursos deve ser norteada pelas necessidades de saúde identificadas, em processo de planejamento ascendente e integrado.
Mas a destinação desigual dos recursos persiste, além de aspectos que reduzem a transparência e dificultam o acompanhamento do gasto federal. Conforme apresentado na Mesa 2 do Seminário, os valores empenhados em 2022 por emendas parlamentares representaram 9,7% do valor empenhado em ações e serviços públicos de saúde.
Por fim, a diretriz constitucional da participação da comunidade no SUS e no processo de planejamento e fiscalização da aplicação dos recursos deve ser respeitada e valorizada. O fortalecimento do SUS requer também medidas que reduzam a participação da oferta privada no consumo de saúde, com maior regulação do Estado e uma redução drástica de incentivos e subsídios ao setor privado.
Confira o conjunto de propostas no relatório técnico produzido a partir do seminário.
Organizado pelo Observatório do SUS da ENSP em parceria com a Abrasco, o seminário “Financiamento do SUS: Equidade, Acesso e Qualidade” foi realizado em 01 de setembro de 2023 no auditório da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/Fiocruz). O encontro abriu a série de três seminários temáticos sobre desafios estruturais do SUS.
Expositores:
- Claudia Pesceto
Economista sênior da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) - Ernesto Bascolo
Chefe da Unidade de Atenção Primária à Saúde e Serviços Integrados da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) - Fabiola Sulpino Vieira
Coordenadora de Estudos e Pesquisas em Saúde da Diretoria de Estudos e Políticas Sociais do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Discoc/Ipea) - Fernando Gaiger Silveira
Técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) - Francisco Funcia
Presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES) - Grazielle Custódio David
Doutoranda do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) - Sulamis Dain
Professora titular aposentada do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IMS/UERJ)
Coordenadoras das mesas temáticas:
- Erika Santos de Aragão
Diretora do Departamento de Economia da Saúde, Investimento e Desempenho da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação e do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (SECTICS/Ministério da Saúde) - Luciana Dias de Lima
Vice-diretora de Pesquisa e Inovação da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz)
Assista à transmissão completa das palestras do seminário