Por Anamaria Schneider e Júlia da Matta
O futuro do Sistema Único de Saúde (SUS) está intrinsecamente ligado aos rumos da democracia e do projeto nacional. Ao longo de 2025, o Observatório do SUS promoveu debates voltados a compreender o lugar e as disputas em torno do SUS em um cenário marcado por tensões políticas e desafios estruturais. Um desses espaços foi o seminário “O SUS em 2025: instrumento ou produto da democracia e da política?”, realizado em parceria com o Mestrado Profissional em Gestão de Sistemas e Serviços de Saúde (ENSP/Fiocruz). O encontro colocou em debate questões centrais para o SUS e suas implicações para a democracia e o projeto nacional.
Realizado no auditório da ENSP, o encontro reuniu pesquisadores, gestores e estudantes em um espaço de diálogo plural. O debate se organizou em torno de dois eixos centrais para fomentar uma reflexão que consolide o caráter público e democrático do sistema: a construção do “comum” na diversidade e os complexos caminhos da relação entre os setores público e privado.
A seguir, reunimos e sistematizamos as principais reflexões que atravessaram o debate.
Eduardo Melo, coordenador do Observatório do SUS e vice-diretor da Escola de Governo em Saúde da ENSP, ressaltou que o seminário integra uma agenda comprometida com a análise de desafios estruturais do SUS e de temas atuais que estão na agenda do SUS tanto enquanto política pública quanto como desafios a superar.
Mariana Albuquerque, pesquisadora da ENSP e integrante da coordenação do mestrado, chamou atenção para a dimensão formativa do debate, destacando que a desigualdade e a diversidade atravessam os objetos de estudo dos alunos do mestrado presentes. Já a relação entre o público e o privado, como ressaltou, acompanha a própria história do Sistema Único de Saúde e se mostra cada vez mais complexa.
Marco Menezes, diretor da ENSP, enfatizou o caráter político do Observatório enquanto uma iniciativa da escola para incidir em debates decisivos para o SUS. Temas como a soberania nacional em saúde e os modelos de gestão público-privada, segundo Menezes, são centrais para o futuro do SUS.
Buscando aprofundar o tema do comum e sua similaridade com o SUS, que é um direito coletivo, solidário e tem gestão compartilhada, Marilene Castilho, pesquisadora titular aposentada da ENSP, moderadora da primeira mesa, destacou os desafios impostos pelo contexto do neoliberalismo e pelo reconhecimento da diversidade enquanto valor democrático e a desigualdade no contexto de deterioração dos valores societários. Ressaltou ainda a importância da criação do SUS, situando-o como marco histórico e político fundamental, fruto do movimento de construção de um projeto democrático e societário e questionou até quando vamos sustentar esse projeto.
Giuseppe Cocco, professor titular da UFRJ, destacou que o SUS foi concebido como um instrumento do projeto político de industrialização do país, em que a cidadania se organiza a partir do trabalho. Como o processo do desenvolvimento industrial não aconteceu efetivamente, o SUS se tornou importante e acabou por se projetar para além desse marco, como uma política pública fundamental.
Cocco ressaltou que o ponto inicial do tema do comum é a centralidade da discussão da relação entre direito e cidadania, sendo a cidadania um princípio geral que, quando operacionalizada na prática, traz diferenças do seu conceito formal e que essa relação é eixo fundamental para se compreender e fortalecer o sistema.
Trouxe um apanhado histórico e político, abordando transformações que influenciaram a mobilidade e a circulação como parte do trabalho, destacando ainda o papel da internet, a uberização e a consequente precarização das relações laborais.
Ele recorreu a metáfora da colmeia e da polinização para se referir ao trabalho e empregabilidade que está presente na atualidade. Essa metáfora é de um pesquisador francês que evidenciou nos EUA a necessidade de se contratar apicultores com suas colmeias diante da morte das abelhas provocada pelos pesticidas usados em determinada localidade. Assim, as abelhas das colmeias realizavam de flor em flor, a polinização das plantas e os apicultores se apropriavam do excedente de produção das abelhas. Com a empregabilidade (uberização), o trabalhador empreendedor (abelha) circula pela cidade para trabalhar (polinização) e recebe pelo que produz, sem as proteções sociais.
Segundo o professor, “estamos diante de um capitalismo que precariza, fragmenta e cria formas de exploração. É nesse contexto que precisamos repensar o que significa construir o comum.”
Destacou que a política do comum deve estar orientada à proteção social, sendo este um grande desafio, mas possível de ser realizado. Citou como exemplos o Programa Bolsa Família, ressaltando sua importância enquanto política comum; a distribuição de renda durante a pandemia, fundamental para garantir acesso e inclusão; e os incentivos à cultura por meio de editais de fomento, que também se configuram como formas de proteção social.
Abordou ainda a transição do humanismo para o momento pós-humanista, marcado pelo colapso ecológico e tecnológico. Ressaltou a importância da academia e da tecnologia nesse cenário, destacando que a política do comum é atravessada por múltiplas dimensões que extrapolam a lógica da direita e da esquerda, voltando-se para as políticas de defesa e produção da vida.
Maria Inês da Silva Barbosa, professora da UFMT, abordou em sua fala a complexa tarefa de construir o comum frente às profundas desigualdades brasileiras. Trouxe para o centro do debate a questão racial como determinante fundamental das desigualdades. Criticou a persistência de lógicas racistas nas políticas de saúde e apresentou dados sobre os anos de vida produtivos perdidos, revelando a profundidade do impacto da violência e do racismo estrutural sobre a população negra. “Enquanto a população branca perde, em média, 189 anos, a população negra perde 753 anos. Como posso discutir novas fases se estou deixando de existir?”, provocou.
Citando Ângela Davis com a frase “não basta não ser racista, é necessário ser antirracista”, Maria Inês Trouxe à memória os quatro séculos de escravidão que moldaram privilégios ainda hoje reproduzidos pela sociedade e instituições.
Relacionou esse debate com a privatização da saúde, a persistência das desigualdades e os altos índices de mortalidade entre mulheres negras e indígenas e enfatizou a importância de compreender os conceitos de “negro” e “preto”, forjados a partir de dimensões sociais, econômicas e histórico-culturais, encerrando sua fala em tom de resistência e afirmação.
Já nos debates, respondendo a indagação acerca de como as lutas identitárias são percebidas no panorama atual e se haveria algum lugar de conexão ou ponte que permita articular essas lutas sem se limitar apenas às específicas ou às gerais, destacou que a luta identitária, tal como se manifesta no contexto colonial, carrega um caráter negativo. Afirmou que a base do colonialismo construiu o outro como um ser inferior: “se você me nega, eu deixo de existir”, criando fissuras e apagando outras potencialidades.
Abrindo a segunda mesa que debateu os caminhos do SUS na complexa relação com o setor privado, a moderadora Fabíola Sulpino, coordenadora de saúde na Diretoria de Estudos e Políticas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), ressaltou a relevância do debate sobre limites e possibilidades das relações público–privadas na saúde, diante de desafios fiscais, pressões da saúde suplementar e necessidade de sustentabilidade do SUS.
Fabíola salientou a centralidade do financiamento público, a pressão do novo arcabouço fiscal e a importância da assistência farmacêutica e da transparência em transferências financeiras para entidades privadas.
O palestrante Helvécio Miranda Magalhães Júnior, professor da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais e consultor da Opas, apresentou um diagnóstico detalhado do financiamento do SUS e da presença privada no sistema. Alertou que no Brasil, apesar do gasto de 9,4% do PIB ser em saúde, apenas 45% são públicos e 55% é gasto privado, o que torna desafiador assegurar a universalidade do SUS.
Helvécio defendeu a integralidade do cuidado a partir das necessidades reais dos usuários e não de uma agenda mínima orientada pela indústria. Ele apontou que os ambulatórios especializados ainda replicam o modelo liberal de consultórios: “Hegemonicamente, nossos ambulatórios especializados replicam a medicina liberal de consultório: médicos centrados, sem prontuário eletrônico, numa situação anos-luz de distância da atenção primária”. Ressaltou ainda o avanço que foi a instituição da Política Nacional de Atenção Especializada e a relevância do Programa Agora tem Especialistas, sobretudo pelo aspecto de ampliação de recursos financeiros de cerca de R$ 2 bilhões por ano.
Afirmou que as filas de espera no SUS se tornaram “um lugar sem dono, sem responsável, sem transparência” e que por esse motivo é assustador para os usuários fazerem parte delas.
Helvécio destacou a dependência da rede privada na complementariedade da atenção à saúde e ressaltou ainda a internacionalização do capital em serviços e laboratórios, o que exige regulação pública mais robusta.
Respondendo questões relativas aos participantes, o palestrante explicou que a exclusão da saúde mental no Programa Agora Tem Especialistas ocorreu por inadequação do parque privado ao marco da reforma psiquiátrica; defendeu a medição transparente de filas (com apresentação dos perfis e tempos de espera), a mudança gradual do modelo ambulatorial por meio de ofertas de cuidados integrados (OCI) e o maior vínculo com a APS. Adicionalmente reforçou os bons resultados de ampliação de cirurgias eletivas e a necessidade de precificação regionalizada dos procedimentos, a fim de regular as disputas por melhores preços e tabelas de serviços.
A apresentação prosseguiu com Lígia Bahia, professora titular da UFRJ, que iniciou sua fala de forma pessoal e afetiva, relembrando o tempo que era aluna na ENSP.
Defendeu olhar para o presente do SUS antes de projetar o futuro: “não iria apenas descrever ‘para onde vai o SUS’, mas refletir sobre ‘onde ele está e para onde pode ir’”.
Destacou que o Brasil tem um dos sistemas mais privatizados do mundo, com cerca de 60% dos gastos e da força de trabalho em saúde no setor privado e que autoridades públicas e gestores frequentemente se articulam a favor de hospitais privados e de elite, revelando uma baixa prioridade política com o SUS.
Enfatizou que as filas no SUS não são apenas falhas gerenciais, mas expressões da exclusão social, reforçando a necessidade de ampliar o financiamento público em saúde.
Ligia reconheceu contradições do Programa Agora Tem Especialistas, mas considerou que ele oferece oportunidade para se recolocar o debate sobre universalidade e que é uma política com elevado potencial desprivatizante, uma vez que caminha para uma forma de “pagador único”. No entanto alertou para os riscos de retrocessos caso não haja clareza e transparência na sua implementação.
Apontou ainda que o Programa Nacional de Aids é um exemplo de como uma resposta pública estruturada pode mudar os rumos do SUS.
Ao finalizar e respondendo a questões apontadas pelo público, sublinhou a centralidade de incorporar as desigualdades sociais e raciais nas agendas e a relevância de trazer o tema ao debate eleitoral e às políticas públicas.
O seminário evidenciou a complexidade dos desafios do SUS em sua consolidação como sistema público universal. De um lado, a necessidade de enfrentar desigualdades históricas profundas que impactam diretamente a vida e a saúde da população; de outro, o desafio de redefinir a relação com o setor privado de forma a não comprometer os princípios de universalidade e equidade.
O financiamento apareceu como questão central, diante da crônica insuficiência de recursos públicos frente às necessidades da população. Ao mesmo tempo, a discussão da manhã destacou que a construção do comum, como projeto societário e político, exige não apenas políticas redistributivas, mas também o reconhecimento da diversidade e o enfrentamento das desigualdades como valores estruturantes.
O evento reforçou a importância de debates e da produção de evidências para orientar políticas de saúde em um cenário marcado por mudanças nas relações público privadas, transformações tecnológicas e desafios políticos e econômicos que atravessam a sociedade brasileira.
Organizado pelo Observatório do SUS em parceria com o Mestrado Profissional em Gestão de Sistemas e Serviços de Saúde (ENSP/Fiocruz), o seminário “O SUS em 2025: instrumento ou produto da democracia e da política?” foi realizado no dia 01 de outubro de 2025, no auditório da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz RJ), com transmissão pelo Canal ENSP YouTube.
Expositores:
Giuseppe Cocco
Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Maria Inês da Silva Barbosa
Professora da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT)
Helvécio Miranda Magalhães Júnior
Professor da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais (FCM-MG) e consultor da OPAS
Lígia Bahia
Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Moderadores:
Marilene Castilho
Pesquisadora titular aposentada da ENSP
Fabíola Sulpino
Coordenadora de saúde na Diretoria de Estudos e Políticas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)
Assista às transmissões completas das mesas do seminário

