Em debate

Saúde Digital e Inteligência Artificial no SUS

Por Observatório do SUS

Por Júlia da Matta, Laís Leonardo Fiebig, Nathalie Rodrigues Pontes Azevedo e Mariana Vercesi de Albuquerque

A transformação digital e o avanço das tecnologias têm provocado mudanças profundas no campo da saúde pública, gerando impactos significativos e diretos para o Sistema Único de Saúde (SUS). Essas transformações têm impulsionado a formulação de políticas, regulamentações e práticas inovadoras no âmbito da saúde digital. Com o objetivo de aprofundar o debate e avaliar os efeitos dessas tecnologias no SUS, o Observatório do SUS, da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/Fiocruz), em parceria com o projeto ‘Implicações das Tecnologias Digitais para o Sistema de Saúde’, vinculado à Iniciativa Saúde Amanhã/Estratégia Fiocruz para a Agenda 2030, promoveu o seminário Saúde Digital e Inteligência Artificial no SUS: desafios e perspectivas.
O evento reuniu especialistas e gestores para discutir os caminhos e as possibilidades para a incorporação dessas inovações no sistema de saúde brasileiro, com ênfase em dois eixos estratégicos: os impactos da Inteligência Artificial e as políticas e experiências subnacionais relacionadas ao uso de tecnologias digitais no SUS.

Eduardo Melo, coordenador do Observatório do SUS e vice-diretor da Escola de Governo em Saúde da ENSP, abordou, na abertura, os principais desafios e oportunidades da transformação digital na saúde. Ele destacou a dificuldade de compreender a saúde digital de forma ampla, além dos especialistas, devido à sua natureza multifacetada, com várias vertentes e componentes internos. Outro desafio apontado foi a relação intrínseca entre os setores público e privado, com o setor privado frequentemente assumindo um papel dominante, o que levanta a necessidade de garantir que os interesses públicos e sociais do SUS prevaleçam sobre os interesses de mercado.
Melo também abordou o problema histórico da desintegração dos diversos sistemas de informação no SUS, destacando que o momento atual de aceleração da transformação digital, impulsionado pela pandemia, pode oferecer uma oportunidade para que essa questão seja alvo de algum tipo de resolução. Ele destacou a importância de avaliar o impacto da transformação digital no acesso ao cuidado à saúde, com a expectativa de facilitar esse acesso, mas também com preocupações sobre equidade e os riscos de fragmentação do cuidado, dependendo de como os processos de implementação forem conduzidos. Nesse contexto, enfatizou a necessidade de uma regulação eficaz da saúde digital, ressaltando que, embora seja um desafio global, o Brasil deve adotar uma abordagem soberana e responsável, levando em consideração as especificidades do país e do SUS.
Leonardo Castro, coordenador do projeto “Brasil Saúde de Amanhã”, reforçou a importância do seminário como um ponto de partida para fortalecer laços entre a academia, o setor público e o setor privado. Ele afirmou que “a transformação digital não pode ser vista apenas como uma modernização tecnológica, mas como uma oportunidade para corrigir desigualdades e ampliar o acesso à saúde”.

A primeira mesa do seminário reuniu cerca de 3.000 pessoas para refletir, de forma presencial ou remota, sobre o potencial da inteligência artificial (IA) para transformar processos e melhorar a eficiência no SUS, ao mesmo tempo que discutiu preocupações relacionadas à segurança de dados e à equidade. Durante o evento, buscou-se responder três questões principais: (1) Quais são as principais oportunidades e os desafios para uso da Inteligência Artificial no SUS? (2) Como iniciativas de inteligência artificial podem apoiar o SUS em suas diferentes funções (assistência, vigilância, promoção da saúde)? (3) Quais as interlocuções do Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA) 2024-2028 com o desenvolvimento de tecnologias no SUS? Além disso, durante o evento foi possível explorar como a digitalização e a inteligência artificial (IA) podem otimizar a gestão e a prestação de serviços, promovendo maior acesso, eficiência e equidade.

Renata Mielle, representando o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), apresentou o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial, ressaltando que “o Brasil precisa desenvolver soluções sob medida, que considerem suas especificidades culturais e econômicas, garantindo a soberania tecnológica”. Ela também alertou para os riscos relacionados à governança dos dados, enfatizando que “é essencial proteger os dados sensíveis do SUS contra usos inadequados ou comerciais”.
Thiago Fontana, coordenador da Secretaria de Informação e Saúde Digital (SEIDIG) do Ministério da Saúde, detalhou os avanços na Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS). Segundo ele, “a RNDS já permite maior integração e interoperabilidade entre os sistemas de saúde, promovendo um fluxo de informações mais ágil e seguro”. Ele também destacou a implantação de soluções baseadas em IA para detecção de anomalias em dados hospitalares e para otimização de compras de medicamentos.
Maurício Barreto, pesquisador da Fiocruz Bahia, enfatizou o papel da IA em sistemas preditivos. “Com a inteligência artificial, podemos antecipar cenários epidemiológicos e propor ações preventivas mais eficazes, especialmente em situações de emergências sanitárias”, afirmou.
Luciana Portilho, coordenadora do CETIC.br, apresentou resultados da pesquisa TIC Saúde. Segundo ela, “mais de 90% dos estabelecimentos de saúde no Brasil já possuem acesso à internet, mas apenas 54% utilizam sistemas integrados para o registro eletrônico de pacientes”. Ela ressaltou a necessidade de maior capacitação para que os profissionais consigam utilizar as novas tecnologias de forma eficiente.
Gilíate Coelho Neto, diretor da EBSERH, compartilhou experiências de integração de dados hospitalares. Ele destacou que “a implementação de IA nos hospitais da rede pública tem o potencial de reduzir desperdícios e melhorar a qualidade do cuidado”.

A participação ativa do público trouxe reflexões relevantes para os debates, destacando-se três tópicos principais: (1) Fragmentação do Cuidado: a integração entre plataformas digitais e ações presenciais são essenciais para evitar a fragmentação do cuidado, especialmente em regiões remotas; (2) Infraestrutura digital: a saúde digital pode ampliar desigualdades já existentes, sobretudo em regiões distantes dos centros urbanos, onde existem lacunas expressivas, sobretudo quanto à oferta de conectividade; (3) Literacia em saúde digital: o uso de novas tecnologias exige o desenvolvimento de competências técnicas específicas – seja para profissionais, gestores ou usuários do SUS –, o que pode se constituir uma barreira expressiva.

As discussões evidenciaram o potencial da inteligência artificial para ampliar o acesso à saúde e otimizar a gestão. Apesar dos avanços, desafios como a desigualdade no acesso e o desenvolvimento profissional permanecem centrais. Nesse sentido, destacam-se como próximos passos a serem incorporados na agenda da incorporação da IA no SUS: (1) desenvolvimento de programas de educação continuada para a adoção de tecnologias emergentes; (2) fortalecimento de parcerias intersetoriais com foco nas instituições públicas; (3) criação de um marco regulatório que garanta o uso ético e seguro da inteligência artificial no SUS.

A segunda mesa do seminário reuniu cerca de 1400 pessoas para refletir, de forma presencial ou remota, sobre as novas oportunidades, as mudanças e os desafios do avanço da saúde digital para o Sistema Único de Saúde (SUS), por meio da análise das experiências, políticas estratégicas, regulações e tecnologias. Os participantes do evento refletiram sobre dois tópicos principais: (1) As prioridades e os avanços recentes nas políticas e estratégias subnacionais de saúde digital, considerando os investimentos e parcerias realizados pelos estados e municípios e as principais mudanças promovidas; (2) Avaliação da Estratégia de Saúde Digital para o Brasil 2028 (ESD28) conduzida pelo governo Federal e como as experiências subnacionais podem apontar caminhos e perspectivas da própria ESD28 e para agenda da saúde digital nos estados e municípios. Além disso, o evento promoveu discussões acerca das expectativas, dos limites e dos desafios enfrentados pelos entes subnacionais para o avanço de iniciativas próprias de saúde digital.

O Ministério da Saúde lançou no ano de 2020 a Estratégia de Saúde Digital para o Brasil 2020-2028, que consolida e sistematiza as estratégias anteriores do Governo Federal, e busca parametrizar as ações relacionadas à saúde digital, seja no âmbito público ou privado. Para tanto, a Estratégia define a participação de um conjunto de atores oriundos não só da gestão governamental, como também aqueles ligados ao setor/indústrias de tecnologia, prestadores de serviços do Sistema de Saúde (instituições privadas de assistência à saúde) e fontes pagadoras do Sistema de Saúde – responsáveis por financiar as ações e serviços de saúde.
Com o objetivo de impulsionar a transformação digital na saúde, por meio da definição de padrões de interoperabilidade abertos e amplamente utilizados, ganha destaque a iniciativa da Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), plataforma nacional para troca de dados em saúde. A RNDS direciona seus esforços para o alcance da interoperabilidade entre os sistemas de informação em saúde, por meio de uma plataforma padronizada e pela garantia de conectividade, elementos essenciais no âmbito da definição de fluxos adequados e que garantam a produção de informação em tempo oportuno.
Inserido no contexto da ESD28, a iniciativa mais recente do Ministério da Saúde é o Programa SUS Digital, que direciona seus esforços para a transformação digital no âmbito do Sistema Único de Saúde, por meio da abordagem multidisciplinar e da integração entre tecnologia, informação e saúde, com objetivo de garantir a integralidade e a resolutividade da atenção à saúde a partir da ampliação do acesso às ações e serviços de saúde. Os critérios de distribuição dos recursos do Programa visam a redução das iniquidades no acesso às soluções e serviços de saúde digital, além de possuir três eixos de atuação: (1) Cultura de saúde digital, formação e educação permanente em saúde; (2) Soluções tecnológicas e serviços de saúde digital no âmbito do SUS; (3) Interoperabilidade, análise e disseminação de dados e informações de saúde. Destaca-se a massiva adesão ao Programa, com o total de 5.562 (99,9%) municípios participantes da primeira etapa lançada em 2024, buscando a convergência nacional de transformação digital no SUS.

A transformação digital no Sistema Único de Saúde está inserida em um contexto de oportunidades e desafios, tanto no âmbito do Governo Federal, quanto de estados e municípios. Diversas iniciativas ganharam destaque no cenário nacional. Dentre essas iniciativas, as dos estados de São Paulo e Rio Grande do Sul e dos municípios do Rio de Janeiro e Recife, compuseram o Seminário organizado pelo Observatório do SUS.
A Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo estruturou sua agenda de transformação digital em cinco eixos: adesão ao Programa SUS Digital, telessaúde na Atenção Primária, transparência nas filas de espera, reestruturação dos serviços de saúde e aprimoramento da Assistência Farmacêutica. Um destaque foi a criação do Centro Líder de Inteligência em Saúde Digital, em parceria com o Hospital das Clínicas, para promover a governança de dados e implementar o Prontuário Digital Integrado (PDI), facilitando o acesso ao histórico clínico dos pacientes nas unidades estaduais.
Já a Secretaria Municipal de Saúde do Recife tem como prioridade a interoperabilidade e uso da Inteligência Artificial no SUS visando aumentar a equidade e a qualidade da atenção à saúde. Avançou com a criação da própria Estratégia de Transformação Digital, a qual tem como princípios e diretrizes a desburocratização e a modernização da relação do poder público com a sociedade, por meio da oferta de serviços digitais; a disponibilização em plataforma única do acesso às informações e aos serviços públicos, que serve de base para novas ações em saúde digital; telessaúde com interoperabilidade inédita do prontuário eletrônico do SUS municipal com o sistema de regulação assistencial e a promoção de dados abertos e integrados, com acesso também pelo cidadão; a implantação do governo como plataforma e a promoção do uso de dados, preferencialmente anonimizados, por pessoas físicas e jurídicas de diferentes setores da sociedade. As estratégias de saúde digital se inserem numa agenda mais ampla de transformação digital da Prefeitura Municipal de Recife, com vistas ao acesso, equidade e qualidade dos serviços públicos. Além disso, contam com a parceria da EBSERH e da AGHU.
A experiência do Rio Grande do Sul teve como foco a atuação do Grupo Hospitalar Conceição (GHC), que vem avançando na criação e no uso de sistemas informatizados para processos administrativos e clínicos, com objetivo de ampliar os serviços ofertados. O GHC tem suas estratégias direcionadas ao desenvolvimento de uma cultura de inovação, em todos os níveis institucionais, com o intuito de elaborar soluções para desafios cotidianos. O processo de informatização teve início na década de 1970 e, atualmente, possui um prontuário bastante customizado às necessidades do Hospital e dos atendimentos, sendo utilizado também por unidades de pronto atendimento (UPA). O grande número de atendimentos permite que o volume de dados obtidos através do uso desse prontuário seja significativo. O desafio atual é alcançar a interoperabilidade envolvendo mais serviços na rede regional.
A cidade do Rio de Janeiro progrediu na implementação de tecnologias inovadoras, na digitalização de serviços, no desenvolvimento de aplicativos e prontuários eletrônicos. Além disso, houve avanços quanto à gestão de informações estratégicas em saúde, à divulgação de dados e à produção de informação para monitoramento e avaliação, com destaque para a criação do Centro de Inteligência Epidemiológica da Cidade do Rio de Janeiro (CIE/SMS-Rio), experiência inédita no país. A organização, integração e automatização dos dados pelo CIE têm feito expressiva diferença para respostas rápidas frente a crises, desastres e emergências sanitárias e, também, para a gestão cotidiana da cidade e da saúde. Há maior rapidez e maior detalhamento simultâneo e instantâneo de produção de boletins, mapas e relatórios analíticos e inúmeras possibilidades de comparações, análises, criação de clusters e novos usos dos dados para orientar a tomada de decisão pública, incluindo alertas para a população. Os dados também têm sido usados para qualificação e treinamento de profissionais.

A interoperabilidade dos diversos sistemas de informação em saúde (SIS) se constitui como um histórico desafio para o SUS, condicionado pela estrutura de gestão fragmentada e pouco eficiente quanto ao uso dos sistemas para a produção de informação em tempo oportuno. Nesse sentido, estratégias subnacionais têm apresentado importantes avanços no que tange a definição de normatização, diretrizes, padrões técnicos, racionalização de recursos e estruturas que possam impactar na interoperabilidade dos SIS.
A Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro ganhou destaque quanto à criação de estratégias avançadas de monitoramento de dados epidemiológicos, fundamental para a ampliação do escopo de atuação da vigilância em saúde, sobretudo relacionado à capacidade de resposta a surtos e emergências de saúde na cidade. Segundo o pesquisador do Programa de Computação Científica (PROCC) da Fiocruz e Consultor do Centro de Inteligência Epidemiológica da Cidade do Rio de Janeiro (CIE/SMS-Rio) e do Centro Nacional de Inteligência Epidemiológica do Ministério da Saúde (CNIE/MS), Oswaldo Gonçalves Cruz, o município do Rio de Janeiro desenvolveu uma infraestrutura de dados unificada capaz de armazenar informações dos mais diferentes sistemas de informação em saúde. Segundo ele, “Hoje, um boletim epidemiológico que antes levava dias para ser gerado fica pronto em minutos”.
As ferramentas InfoGripe e InfoDengue também são destaques do município carioca, as quais foram desenvolvidas pela Fiocruz e integradas ao CIE, e monitoram a propagação de doenças em tempo real, oferecendo modelos preditivos baseados em dados do Sistema de Informações de Agravos de Notificação (SINAN) e de fontes complementares. Além disso, o Rio de Janeiro também tem tido importantes avanços quanto à criação de painéis interativos que facilitam a análise de dados temporais e espaciais, acessíveis aos gestores de saúde, permitindo previsões, como o impacto de ondas de calor na saúde pública, a partir de dados meteorológicos e de saúde. Outro avanço mencionado foi a criação de um sistema de monitoramento vacinal para identificar atrasos e planejar ações de resgate de coberturas.
Segundo Roberta Rúbia, assessora técnica da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e membro da Câmara Técnica de Saúde Digital do COREN-SP, o estado tem buscado avanços na integração de dados e produção de informações por meio da criação do Núcleo de Informação em Saúde e Estratégia, inspirado em modelos da Bahia e Goiás, que permite a visualização de dados em tempo real com o objetivo de apoiar a tomada de decisões.
Recife se destaca por ser uma experiência única de interoperabilidade entre prontuário e sistema de regulação em saúde, além de ter evidência, por meio da aplicação de inteligência artificial para redução do absenteísmo e gestão de filas, possibilitando uma visão mais ampla do histórico de saúde dos pacientes. Essa estratégia permite um atendimento mais eficiente e garante o acesso a dados atualizados por toda a rede de saúde municipal, destacou o gerente de Saúde Digital da Secretaria Municipal de Saúde do Recife, Gustavo Godoy.
Dentre as inovações do Grupo Hospitalar Conceição (GHC), evidencia-se a criação do EcoInfo AES (Ecossistema de Informações da Atenção Especializada em Saúde) – oriundo de um acordo de cooperação técnica com o Ministério da Saúde em 2024 -, para construção da interoperabilidade em um escopo amplo de saúde digital. O foco da estratégia é a integração de dados especializados, monitoramento de indicadores de desempenho e ampliação do acesso a informações confiáveis e oportunas, bem como a promoção da continuidade e a qualidade do cuidado. O acordo é baseado no PMAE (Programa Mais Especialistas) e nas mudanças trazidas pela PNAES (Política Nacional de Atenção Especializada em Saúde), tais como a Oferta de Cuidados Integrados (OCI) e no plano de ação regional. O GHC trata das ações em saúde digital e do ECOINFO AES na perspectiva da produção de conhecimento e de pesquisa. Segundo Luis Antônio Benvegnú, Diretor de Atenção à Saúde, o grupo também desenvolveu ações relacionadas à aplicação de telemetria para monitorar o fluxo de pacientes no centro cirúrgico, o que otimiza a utilização dos leitos e amplia a capacidade de atendimento.
As experiências subnacionais identificadas expressam os avanços em termos da interoperabilidade de dados e integração de prontuários. Contudo, essas estratégias têm sido locais, não configurando ainda uma integração regional da rede de serviços ou mesmo de todo o estado com seus municípios.
A saúde digital tem proporcionado novas possibilidades de produção de dados que podem melhorar muito a identificação das necessidades em saúde, de forma mais rápida e precisa. Nem todos os dados produzidos por serviços, centros e governos são de acesso público e irrestrito, mas devem ser usados pelos governos, serviços públicos e instituições de ensino e pesquisa para tomada de decisão e fortalecimento do SUS, garantindo acesso com mais equidade e qualidade. As tecnologias digitais são fundamentais para viabilizar novas mudanças, pois abrem possibilidades de mudar o financiamento, o acesso, o planejamento e a gestão, a prestação de serviços, o cuidado em saúde, a vigilância e a pesquisa e inovação em saúde. Novos dados, métodos de análise e comparação têm dado visibilidade a problemas que não estavam tão evidentes, gerando demanda por novas ou melhores soluções. O avanço da saúde digital representa novos desafios para a qualidade, tipos de uso e, também, desigualdades de acesso e uso.

A telessaúde tem sido priorizada por governos de estados e municípios para aumento da oferta de serviços, realização de diagnósticos de forma mais célere e ampliação da resolutividade das redes de saúde. Atualmente, essa iniciativa é uma das principais estratégias do Programa SUS Digital, que utiliza as tecnologias digitais para fornecer teleatendimento de forma complementar às consultas presenciais, ampliando o acesso a especialistas e reduzindo o tempo de espera, acelerando diagnósticos e tratamentos.
A Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo tem avançado na expansão da telessaúde, estruturada em quatro modelos – atenção primária, especializada e hospitalar, além de assistência à população privada de liberdade.
Ainda no contexto de expansão das tecnologias sobre os sistemas de saúde, inserida nas ações da ESD28, o governo federal vem priorizando o desenvolvimento de ferramentas digitais de saúde, com destaque para o aplicativo ‘Meu SUS Digital’. A tecnologia facilita o acesso às informações de saúde, com objetivo de promover a continuidade do cuidado e a garantia da transparência e segurança dos dados. Os usuários do SUS podem emitir por meio do aplicativo documentos e certificados, acompanhar resultados de exames laboratoriais, histórico de medicamentos dispensados pelo Farmácia Popular, bem como acompanhar sua posição na fila do Sistema Nacional de Transplantes.
O desenvolvimento de aplicações tem sido prioridade também das gestões estaduais e municipais. Destaque para a Secretaria Municipal de Saúde do Recife, que implantou o Programa Conecta Recife, plataforma que oferece uma carta de cerca de 600 serviços, incluindo agendamentos e informações de saúde. Além disso, por meio da inteligência artificial, a plataforma facilita o acesso e combate a desinformação. O estado de São Paulo tem avançado na oferta de plataformas digitais, incluindo a integração de serviços de saúde com o Programa Poupatempo, que possibilita agendamentos e o acesso a programas preventivos, como o “Mulheres do Peito”.

As experiências apresentadas reforçaram a importância da parceria dos estados e municípios com as universidades, instituições de ensino e pesquisa e, eventualmente, empresas de inovação em tecnologia digital. A saúde digital representa novas oportunidades de ciência, tecnologia e inovação dentro dos serviços e da gestão, em parceria com universidades e instituições de pesquisa, voltadas para atender às necessidades do SUS. A telessaúde é um grande exemplo disso e permanece como uma linha de atuação e parceria bastante importante. Inclusive, é foco de interesse e parceria com os COSEMS, como no caso do Rio Grande do Sul. Em São Paulo, a Secretaria Estadual faz parceria com o Inova Hub de inovação da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Em Recife, os gestores municipais costumam acionar empresas startups para buscar soluções para problemas delineados por eles. O CIE, no Rio de Janeiro, conta com pesquisadores e parcerias da Fiocruz/RJ.
Os palestrantes reforçaram que faltam pessoas formadas e qualificadas para lidar com a saúde digital e todo seu potencial. Cursos EAD não são suficientes. Conforme destacou Oswaldo Gonçalvez Cruz, “faltam Cientistas de Dados com especialidade no setor saúde”.

No debate sobre as experiências apresentadas, ficou nítida a diferença entre a perspectiva pública e privada da saúde digital. Na perspectiva pública, suas inovações devem estar alinhadas aos princípios do SUS, ao compromisso com a equidade e com o atendimento das necessidades em saúde de uma forma ampla e integral. Além disso, o SUS e a parceria com as universidades e instituições públicas de ensino e pesquisa buscam a formação, qualificação e educação permanente para trabalhadores da saúde e profissionais de diversas áreas. A formação tem sido uma das questões estruturais para viabilizar a transformação digital de interesse e necessidade do SUS. Na perspectiva privada, as soluções de mercado em saúde digital visam atender demandas específicas de planos de saúde. É uma lógica mais corporativa e seletiva.
Contudo, as soluções de saúde digital para o SUS como, por exemplo, para resolver filas, enfrentam limites históricos do sistema, que resultam de relações anteriores e cada vez mais imbricadas entre setor público e privado, entre lógicas de cidadania e direitos e outras de mercadoria, financeiras e corporativas. A saúde digital pode resolver filas, porém, não resolve sozinha o problema do subfinanciamento do SUS e da demanda por desconcentração de recursos, profissionais e serviços para aumentar a oferta assistencial. Esta solução é óbvia, mas longe de ser simples, pois é fortemente influenciada por lógicas de mercado.
Outra questão central é a governança e segurança dos dados digitais. A segurança é a palavra-chave para as soluções de saúde digital. Há forte pressão e interesse do mercado para obter os dados em saúde e isso deve ser muito bem regulado pelo poder público, para evitar riscos e usos indevidos dos dados das pessoas. Lembrando ainda que serviços de saúde para o SUS não são exclusivamente estatais e envolvem uma enorme diversidade de serviços de natureza privada e pública, estes sob gestão das três esferas de governo.
A integração entre sistemas e dados também se insere nos desafios da governança público e privada do SUS, bem como naqueles referentes às relações intergovernamentais. A dificuldade de construção da interoperabilidade de forma regional (conjunto de municípios e serviços em uma região de saúde) não é apenas técnica ou tecnológica, recai sobre questões políticas, relações de poder, disputas de interesses e problemas regulatórios. A saúde digital tem potencial para reestruturar regiões do ponto de vista produtivo e das relações intergovernamentais e público-privadas. Os problemas e dificuldades da integração e coordenação regional do SUS, assim como as soluções, também passam pela saúde digital. Soluções conjuntas e negociadas entre governos, instituições e a sociedade são fundamentais para superar esses desafios.
A perspectiva de ampliar e fortalecer a parceria com o setor privado para busca de soluções digitais para o setor saúde, tende a ser mais forte nos estados e municípios com grande influência do setor privado na prestação de serviços para o SUS ou onde os governos têm priorizado, de forma geral, as parcerias público-privadas, as privatizações e a maior influência da lógica privada nos investimentos e nas agendas para o setor público.

A participação ativa do público trouxe reflexões relevantes para os debates, destacando-se três tópicos principais: (1) formação e treinamento profissional para apreensão de habilidades técnicas necessárias ao uso das tecnologias digitais; (2) ampliação de infraestrutura tecnológica, sobretudo em áreas remotas; (3) desenvolvimento de alternativas que garantam a interoperabilidade entre os sistemas de informação, garantindo o compartilhamento seguro de dados entre os três entes Federativos.

O SUS é um dos mais importantes laboratórios para a saúde digital e a transformação digital, dentro dos seus princípios de universalidade, integralidade, equidade, regionalização e descentralização. A troca de experiências entre governos subnacionais e as parcerias e diálogos com instituições públicas de ensino e pesquisa, com governos e com a sociedade é um caminho necessário para garantir a transformação digital dentro dos princípios do SUS. O território brasileiro – vasto, diverso e desigual – têm produzido muitas experiências importantes e interessantes de saúde digital, que podem apontar novos caminhos e perspectivas para o SUS.
A partir da oportunidade de reflexão trazidas pelo Seminário, alguns pontos devem subsidiar a agenda da transformação digital no SUS, dentre os quais destacam-se: (1) definição de critérios para distribuição de recursos com base na redução das iniquidades no acesso à saúde e aos serviços de saúde digital; (2) desenvolvimento de infraestrutura pública, capaz de garantir a soberania tecnológica do Brasil; (3) ampliação da interoperabilidade entre sistemas municipais, estaduais e federais; (4) desenvolvimento de estratégias voltadas para a literacia em saúde digital, com ênfase no aprimoramento profissional e no desenvolvimento de habilidades para os usuários do SUS; (5) fortalecimento e ampliação da infraestrutura e infoestrutura, sobretudo em regiões com menor densidade tecnológica e oferta de profissionais especializados.

Organizado pelo Observatório do SUS em parceria com a equipe do projeto “Implicações das Tecnologias Digitais para o Sistema de Saúde”, da Iniciativa Saúde Amanhã/ Estratégia Fiocruz para a Agenda 2030 (Marcelo Fornazin, Mariana Vercesi de Albuquerque, Leonardo Castro, Laís Leonardo Fiebig, Matheus Falcão e Raquel Rachid). O Seminário “Saúde Digital e Inteligência Artificial no SUS: desafios e perspectivas” foi realizado no dia 31 de outubro de 2024, no auditório da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz RJ), com transmissão pelo Canal ENSP YouTube

Expositores:  

  • Luciana Portilho
    Coordenadora do Projeto TIC Saúde do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br)
  • Renata Mielli
    Coordenadora do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) e Assessora Especial da Ministra da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI)
  • Tiago Bahia Fontana
    Coordenador-Geral de Disseminação e Integração de Dados e Informações em Saúde da Secretaria de Informação e Saúde Digital do Ministério da Saúde (CGDID/DEMAS/SEIDIGI/MS)
  • Maurício Barreto
    Pesquisador da Fiocruz Bahia e Coordenador Científico e Cocriador do Centro de Integração de Dados e Conhecimento para a Saúde (Cidacs/Fiocruz)
  • Giliate Cardoso Coelho Neto
    Diretor de Tecnologia da Informação da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh)
  • Gustavo Godoy
    Gerente Geral de Saúde Digital do Núcleo de Telessaúde da Secretaria Municipal de Saúde de Recife/PE
  • Luis Antônio Benvegnú
    Diretor de Atenção à Saúde do Grupo Hospitalar Conceição (GHC)
  • Oswaldo Gonçalves Cruz
    Pesquisador do Programa de Computação Científica (PROCC) da Fiocruz e Consultor do Centro de Inteligência Epidemiológica da Cidade do Rio de Janeiro (CIE/SMS-Rio) e do Centro Nacional de Inteligência Epidemiológica do Ministério da Saúde (CNIE/MS)
  • Roberta Rúbia
    Assessora técnica da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e membro da Câmara Técnica de Saúde Digital do COREN-SP

Coordenadoras das mesas temáticas: 

  • Marcelo Fornazin
    Conselheiro do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), Coordenador do Grupo Temático de Informação, Saúde e População (GTISP) da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e Pesquisador do Departamento de Administração e Planejamento em Saúde da ENSP (DAPS/ENSP/Fiocruz)
  • Mariana Vercesi de Albuquerque
    Pesquisadora do Departamento de Administração e Planejamento em Saúde da ENSP (DAPS/ENSP/Fiocruz)

Assista às transmissões completas das mesas do seminário

  • Impactos e possibilidades do uso da Inteligência Artificial para o SUS
  • Saúde Digital no SUS: Políticas e Experiências

Publicado em: 19 de dezembro de 2024


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