
Por Anamaria Schneider e Júlia da Matta
O acesso à atenção especializada é um dos gargalos mais persistentes do Sistema Único de Saúde (SUS) e um grande motivo de insatisfação da população. A expressão disto para o cidadão é a limitação do acesso a consultas, exames e procedimentos, o retardo no diagnóstico, as grandes distâncias a serem percorridas para realização de tratamento, a falta de continuidade e integração de cuidados, dentre outras. No que diz respeito as causas do problema, destacam-se a oferta insuficiente (variando a depender da especialidade ou exame e da localidade), o subfinanciamento, o modelo de atenção na área especializada, o modelo de financiamento e a insuficiência ou má distribuição de especialistas.
Em outubro de 2023 o Ministério da Saúde publicou a Política Nacional de Atenção Especializada (Pnaes), estabelecendo diretrizes e normas relativas à atenção ambulatorial, hospitalar, de urgência e emergência, materno infantil, atenção domiciliar, psicossocial, os serviços de transplante, sangue e hemoderivados, tendo seu foco na organização regional do acesso.
Em abril de 2024, no âmbito da Pnaes, foi instituído o Programa Nacional de Expansão e Qualificação da Atenção Especializada, também conhecido como Mais Acesso a Especialistas (Pmae), que estabeleceu as regras para o acesso aos serviços especializados notadamente de caráter ambulatorial. Este Programa reforça o aspecto regional da Atenção Especializada, com o estabelecimento da necessidade de Planos de Ação Regional elaborados por municípios e pactuados em CIB e CIR como critério de adesão, e traz a Oferta de Cuidados Integrados (OCI) como forma de organização das ações e serviços de saúde.
A OCI é um conjunto de procedimentos e tecnologias de cuidados, que correspondem a uma etapa da linha de cuidados, a serem realizados num tempo oportuno, definido pelo MS. Essa nova modelagem de oferta traz como inovação a substituição da forma de pagamento por procedimento isolados (desenvolvida no sistema público de saúde desde os tempos de Inamps) pelo pagamento de um rol de procedimentos articulados, além de um valor diferenciado, maior do que a tabela SUS vigente. Adicionalmente, o Pmae define as áreas prioritárias para enfrentamento do problema, a saber, oncologia, cardiologia, ortopedia, oftalmologia, otorrinolaringologia e ginecologia. Para acompanhar e monitorar a execução dos serviços, institui grupos condutores, com participação do Ministério da Saúde, estados e municípios.
No dia 30 de maio deste ano, o governo federal lançou a reformulação do Programa Mais Acesso a Especialistas, desta vez rebatizado como Agora Tem Especialistas, instituído por medida provisória assinada pelo presidente da República. O novo Programa mantém o conjunto de estratégias do Pmae, além de agregar novos dispositivos, como a ampliação das possibilidades de participação do setor privado de saúde na execução de serviços, incluindo mecanismos de compensação de dívidas e de ressarcimento ao SUS.
O novo Programa também incorpora o componente cirurgia, amplia a participação do Ministério da Saúde na execução de serviços, incluindo veículos para atendimento móvel, reforça a atuação da AgSUS – Agência Brasileira de Desenvolvimento do SUS e do Grupo Hospitalar Conceição na atenção especializada, expande a utilização de telessaúde, cria departamentos específicos para a atenção especializada dentro do Ministério da Saúde, autoriza o MS a realizar credenciamento de prestadores, estabelece a abertura de 3 mil novas vagas para formação de especialistas e a provisão de 500 médicos especialistas para lotação a partir de setembro de 2025. Para reforço da oferta pública de serviços, aponta investimentos do PAC na ordem de R$ 2,5 bilhões/ano para policlínicas, unidades de pronto atendimento, ambulatórios e salas cirúrgicas, além de autorizar turnos extra para atendimento nos estabelecimentos federais.
Diante desse cenário, o Observatório do SUS conversou com especialistas e gestores sobre alguns aspectos-chave da nova configuração do Programa Agora Tem Especialistas, buscando compreender melhor as perspectivas de avanços, os desafios e as implicações dessas mudanças para enfrentar as barreiras de acesso à atenção especializada no SUS.
Apresentamos, nesta publicação, análises de Rodrigo Oliveira, diretor de Programa da Secretaria de Atenção Especializada do Ministério da Saúde e responsável pelo Agora Tem Especialistas; Túlio Franco, professor titular do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal Fluminense (UFF); Conceição Rocha, Secretária Municipal de Saúde de Piraí e presidente do Cosems-RJ; e Cristiani Vieira Machado, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz).
As análises estão organizadas em quatro blocos temáticos, que refletem os principais aspectos explorados nas entrevistas: o novo modelo de financiamento, as relações público-privadas no SUS, a atuação federal na execução dos serviços e as estratégias para o fortalecimento da atenção especializada pública.
O Programa Mais Acesso a Especialistas (PMAE) propõe uma mudança significativa no financiamento da atenção especializada, com a adoção de pacotes integrados de cuidado em vez do pagamento por procedimento. Um exemplo disso é a instituição das Ofertas de Cuidado Integrado (OCI), conjuntos de procedimentos pré-definidos para investigar condições de saúde específicas, que passam a ser remuneradas em bloco, caracterizando-se como um dos instrumentos centrais do Programa.
Para Rodrigo Oliveira, Diretor de Programa da Secretaria de Atenção Especializada e responsável pelo programa Agora Tem Especialista, a proposta constitui um esforço de induzir, a partir do financiamento, mudanças no cotidiano dos serviços de saúde, promovendo uma inflexão significativa na forma de produzir atenção especializada ao buscar superar a fragmentação do cuidado e a centralidade em procedimentos isolados.
“Com a oferta de cuidados integrados a gente pretende iniciar um processo de reorganização colocando no centro desse cuidado na atenção especializada as necessidades de saúde do usuário”, afirma Oliveira.
Essa mudança exige uma reorganização mais ampla do sistema, com impactos diretos na gestão regional, na programação assistencial e na forma de cuidar. Para isso, estão sendo implantados dispositivos de gestão do cuidado na atenção especializada ambulatorial, como setores de navegação do cuidado nas unidades e nos sistemas locorregionais e municipais, além do fortalecimento da coordenação regional por meio de planos de ação.
De acordo com o diretor, a reformulação amplia a estratégia iniciada em 2024 com o PMAE, mas expande significativamente o volume de recursos e a variedade de prestadores envolvidos, uma vez que incorpora a participação de prestadores públicos, como o Grupo Hospitalar Conceição e unidades da rede AgSUS.
Túlio Franco, professor Titular do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal Fluminense, avalia que o modelo de financiamento do PMAE é bastante interessante e leva consideração os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS). Ele destaca duas condições centrais nessa avaliação: a garantia da integralidade do cuidado, ou seja, assegurar que o usuário tenha acesso a todos os recursos necessários para atender suas necessidades de saúde; e a ideia de linha de cuidado, um fluxo que garante conexão entre os serviços.
Túlio ressalta como avanço a criação da Oferta de Cuidado Integrado (OCI), instrumento central do novo modelo, que tem como objetivo facilitar o acesso do usuário a consultas e exames especializados. Segundo ele, a OCI busca reduzir a burocracia e o tempo de espera no SUS, garantindo que o encaminhamento do usuário ocorra, sempre que possível, para um serviço que realize a maior parte ou todos os procedimentos necessários. Essa estratégia incorpora a lógica da integralidade e da continuidade do cuidado, “ou seja trabalha com o conceito de linha de produção do cuidado”, afirma o professor.
Outro ponto enfatizado por Túlio é o compromisso com a agilidade no atendimento. A proposta prevê que a maioria dos procedimentos seja realizada em prazos de 30 a 60 dias. Para o professor, o programa avança ao introduzir “instrumentos novos para garantir, diria assim, a governança desse processo, a sua execução na ponta da rede de saúde”.
Conceição Rocha, Secretária Municipal de Saúde de Piraí e presidente do COSEMS-RJ, considera louvável a iniciativa do governo federal de relançar o programa, justamente por representar um esforço para injetar recursos no sistema e enfrentar as distorções na atenção especializada, considerando que um dos principais entraves para a efetividade do sistema público de saúde brasileiro é o subfinanciamento histórico, agravado nos últimos anos. Para ela, a fragmentação da rede de atenção e a ineficiência no acesso a especialistas são consequência direta de um modelo que não recebe os investimentos necessários para atender às demandas da população.
Nesse contexto, a presidente do COSEMS-RJ aponta como positiva a mudança na forma de pagamento por meio da Oferta de Cuidado Integrado (OCI), que se propõe a reorganizar o fluxo do cuidado, garantindo que o usuário tenha acesso, em um mesmo encaminhamento, a um conjunto de procedimentos necessários — como consultas, exames e diagnósticos — com prazos definidos. Conceição compara esse modelo ao que já ocorre na alta complexidade hospitalar com os pacotes cirúrgicos, o que, em sua visão, representou um avanço frente ao antigo modelo fragmentado de pagamento.
Conceição destaca que alguns municípios maiores já vêm organizando seus serviços com essa lógica integrada, especialmente por gestores mais experientes e comprometidos com a organização do cuidado. Ela acredita que, com investimentos consistentes e indução federativa, é possível avançar na consolidação de um novo modelo de atenção especializada.
Cristiani Machado, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) também enfatiza a relevância de implementação de uma estratégia no SUS para ampliação do acesso a especialistas. Ela lembra que o pagamento por atendimento especializado é uma das principais causas de desembolso direto das famílias, o que evidencia a urgência de ampliar o acesso público a esses serviços.
A pesquisadora destaca que a barreira de acesso impacta especialmente áreas críticas como oncologia e cardiologia — campos em que o acesso oportuno é decisivo para a qualidade do cuidado e para evitar mortes prematuras. Nesse contexto, ela ressalta que a escolha das áreas priorizadas pelo PMAE é pertinente, pois responde a gargalos históricos do SUS.
Sobre a proposta de mudança no modelo de financiamento, Cristiani também considera positiva a transição do pagamento por procedimento isolado para uma lógica baseada em cuidados integrados. No entanto, alerta que o sucesso dessa mudança depende de uma série de fatores: é preciso definir claramente que tipo de cuidados integrados serão oferecidos, como serão descritos, qual o valor que será pago por esses conjuntos de serviços e se esse valor será suficiente para garantir atenção de qualidade. Ela ressalta que a concepção não pode ser restritiva nem usada como justificativa para limitar o acesso a um número pequeno de procedimentos — o que, na prática, manteria a fragmentação.
“Pode ser uma mudança positiva, mas desde que isso seja feito numa lógica abrangente, baseada em evidência e com uma remuneração adequada aquele conjunto de ações que precisam ser asseguradas para um determinado tratamento, para uma determinada atenção especializada”, afirma.
A pesquisadora faz um alerta importante quanto à operacionalização do novo modelo, especialmente no contexto de contratualização com prestadores privados. Cristiani destaca que o acompanhamento, avaliação de qualidade e escuta ativa dos usuários são extremamente relevantes para que a oferta de serviços dentro dos pacotes pagos não seja reduzida em prol da maximização dos lucros, o que contraria a lógica da integralidade do cuidado. Diante disso, considerando a lógica de contratualização de prestadores privados que o novo modelo de financiamento enfatiza, a pesquisadora defende que a implantação do programa esteja apoiada em evidências, com remuneração adequada, regulação eficaz, transparência nos critérios e acompanhamento rigoroso, para que a mudança de modelo de fato beneficie os usuários do SUS.
O programa prevê uma ampliação da participação da rede filantrópica e privada, com a utilização de sua capacidade ociosa, que atuarão por diferentes modalidades, inclusive com a possibilidade de quitar dívidas com a União por meio da prestação de serviços ao SUS.
Com relação ao aumento da participação dessas redes, segundo o Diretor de Programa da Secretaria de Atenção Especializada do Ministério da Saúde responsável pelo Agora tem Especialistas, o principal objetivo do programa — a ampliação da oferta de serviços de atenção especializada no SUS, enfrentando tempos excessivos de espera que geram impactos severos tanto na saúde individual quanto na saúde coletiva, inclusive com aumento dos custos para o sistema público — exige a utilização plena de toda a estrutura de saúde disponível no país, pública, filantrópica e privada, num esforço coordenado para responder à demanda represada, especialmente após a pandemia. Ele ressalta que, além do investimento na ampliação de hospitais, policlínicas e hospitais universitários por meio do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), o programa também aposta em estratégias para mobilizar a capacidade ociosa da rede privada e filantrópica, reconhecendo que o setor privado já tem participação consolidada na atenção especializada do SUS.
Rodrigo explica que esse movimento inclui novas formas de contratação e participação do setor privado, como o credenciamento universal, a possibilidade de quitar dívidas com a União por meio da prestação de serviços ao SUS e a articulação com o ressarcimento de valores devidos por planos de saúde. Todas essas estratégias visam integrar novos prestadores à lógica do SUS, não como alternativa ao sistema público, mas como parte de um esforço emergencial e articulado para ampliar a resposta assistencial.
Ao mesmo tempo, ele ressalta que essa ampliação da oferta está sendo cuidadosamente pactuada com CONASS e CONASEMS, de forma a não provocar desorganização do sistema nos municípios, regiões e estados. O programa, segundo Rodrigo, reforça a governança do SUS, com respeito absoluto à programação pactuada nas comissões bipartites, ao papel dos gestores locais e à regulação pública dos serviços. Ele destaca que toda a oferta adicional será regulada pelos mecanismos já existentes nos territórios, sob controle de estados e municípios, com base em fluxos previamente organizados.
Rodrigo ressalta que foi criado um grupo de trabalho conjunto entre o Ministério da Saúde, CONASS e CONASEMS para revisar a Política Nacional de Regulação. O objetivo é adequá-la às novas condições, garantindo transparência nas filas, comunicação efetiva com a população e agilidade na regulação da oferta, de forma a assegurar que toda essa ampliação esteja, de fato, a serviço do povo e sob gestão pública.
Com relação `a contratualização do setor privado e filantrópico para prestar serviços ao SUS, Túlio Franco destaca que, longe de ser novidade, é uma prática histórica do sistema. Desde sua criação, o SUS, ao adotar o princípio da universalidade e não contar com uma rede pública plenamente instalada, recorre ao setor privado para suprir demandas assistenciais, especialmente em áreas de média e alta complexidade. Essa lógica está prevista na legislação — na Lei nº 8.080/1990, que estabelece o papel complementar do setor privado ao SUS — e se justifica pelo fato de que cerca de 70% dos equipamentos hospitalares e procedimentos de maior complexidade estão fora da rede pública. Portanto, “para garantir o acesso à população, é necessário contratualizar”, afirma.
Segundo ele, essa prática é legítima, mas requer que os contratos sejam firmados respeitando os princípios do SUS e sob controle do Estado. Túlio reforça que os contratos devem ter o controle, acompanhamento e a fiscalização de gestores e conselhos de saúde e que “toda participação deve ser negociada na Comissão Intergestores Tripartite, que tem a participação dos estados, dos municípios, além de participação do governo federal”, destaca. Essas instâncias garantem pactuação federativa com o compartilhamento de decisões.
Outro ponto enfatizado por Túlio é a importância de aproveitar a capacidade ociosa da rede de saúde, tanto pública quanto privada. Em um contexto de defasagem de equipamentos e instrumentos e filas extensas de espera por procedimentos, o professor avalia que iniciativas que aumentem a produtividade da rede instalada são estratégicas.
Para ele, essas iniciativas previsas no programa Agora Tem Especialista fortalecem o sistema público ao promover maior acesso, menor tempo de espera, redução de filas e melhores resultados para os usuários. Ao mesmo tempo, permitem que o setor privado participe de forma regulada e remunerada conforme critérios do Estado, o que contribui para a eficiência geral do sistema. Os ganhos mais importantes, como pontua, são para a população, que terá acesso mais rápido e qualificado aos serviços de que necessita.
Com 26 anos de experiência na gestão pública de saúde, Conceição Rocha, reconhece a urgência de ações diante da crise das filas no SUS, especialmente no contexto pós-pandemia. Para ela, o aumento dos casos e de sua complexidade, impulsionado pelo envelhecimento acelerado da população e o agravamento de doenças como o câncer, exige do sistema uma resposta mais organizada e efetiva. A pandemia, segundo Conceição, deixou marcas profundas na sociedade, um cenário que afeta também a relação dos usuários com os serviços e sua capacidade de acessar informações de forma crítica.
Nesse sentido, vê o programa Agora Tem Especialistas como uma tentativa necessária de resposta. Quanto à utilização da rede privada e filantrópica como estratégia de ampliação de oferta, ela faz uma distinção entre as modalidades propostas. Reconhece como oportuna a alternativa que permite que prestadores privados quitem dívidas com a União por meio da prestação de serviços ao SUS, o que representa, segundo ela, “dinheiro novo” para o sistema e um caminho para regularizar instituições que precisam estar em conformidade para contratar com o poder público. No entanto, manifesta ceticismo quanto ao ressarcimento por parte dos planos de saúde, apontando dúvidas sobre sua real efetivação.
Ainda com relação à estratégia, Conceição chama atenção para a complexidade da regulação, os riscos de fragilização dos controles e a necessidade de mecanismos rigorosos de acompanhamento. Ela lembra que há prestadores — inclusive UNACONS (Unidades de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia) — que operam há décadas com dívidas fiscais ou documentação irregular, e que a escassez de oferta frequentemente força gestores a contratá-los mesmo gerando dilemas éticos e operacionais ao evitar desassistência a população.
Conceição alerta ainda para riscos de segregação no atendimento, caso não haja uma regulação forte e vigilância rigorosa. Ela adverte para a possibilidade de que prestadores privados discriminem usuários e releguem ao SUS um padrão inferior de atendimento. Além disso, manifesta preocupação com a atual falta de técnicos qualificados e sistemas de regulação robustos no país, necessários para acompanhar, controlar e interoperar os dados de forma eficaz. Para a presidente do COSEMS-RJ, é fundamental investir em um software de abrangência nacional, com capacidade de integrar informações entre os territórios e permitir visibilidade real da capacidade instalada no país, combatendo a fragmentação dos sistemas de regulação hoje existente.
Conceição destaca que o modelo de atenção à saúde ainda é excessivamente médico-centrado e fragmentado, tanto na rede pública quanto na privada, e que o programa propõe uma organização mais multidisciplinar. Contudo, ela reforça que, se o Ministério da Saúde não fomentar financeiramente essa reorganização do cuidado, o resultado será a manutenção do padrão atual, em que o SUS continua comprando serviços fragmentados do setor privado, sem transformação real na lógica de atenção.
Para Cristiani Vieira Machado, a ênfase na contratação de serviços privados para ampliação da atenção especializada no SUS é o ponto mais delicado e arriscado do programa. Cristiani reconhece que, no curto prazo, a iniciativa pode sim contribuir para reduzir tempos de espera e responder a demandas urgentes. No entanto, questiona a sustentabilidade dessa estratégia a médio e longo prazos, especialmente por reforçar a estrutura de um setor privado já fortemente financiado e apoiado pelo Estado.
A pesquisadora chama atenção também para o fato de que os problemas de acesso a especialistas não são exclusivos do setor público. Ela aponta que o setor privado brasileiro também enfrenta estrangulamentos, barreiras e restrições que comprometem o acesso de seus usuários, sobretudo nos planos de saúde de menor cobertura. Entre os problemas citados estão consultas caras, múltiplas exigências de autorizações para exames, negativas de cobertura e estratégias para conter custos que comprometem o atendimento adequado. Nesse sentido, Cristiani ressalta que a ampliação da participação do setor privado não garante por si só melhoria no acesso ou na qualidade, e pode, ao contrário, reproduzir desigualdades e barreiras já presentes também nesse segmento.
Entre as mudanças previstas na reformulação do programa, chama atenção a atuação mais direta do Ministério da Saúde na execução dos serviços, com o uso de mecanismos próprios para a contratação da rede privada. Esse reposicionamento do governo federal na gestão e execução pode representar uma mudança significativa na dinâmica federativa, com possíveis repercussões para estados e municípios.
A entrada da União na execução direta de serviços no âmbito do Agora Tem Especialistas, de acordo com Rodrigo Oliveira, tem caráter complementar e articulado às programações estaduais e municipais, seguindo os princípios da governança do SUS. Segundo ele, a atuação federal se soma às estratégias de credenciamento, quitação de dívidas por prestação de serviços e novas formas de ressarcimento ao SUS, e tem como objetivo ampliar a oferta de atenção especializada, com foco na redução do tempo de espera e no enfrentamento das filas.
O diretor explica que a União atuará por meio de três frentes principais. A primeira é o credenciamento de prestadores via edital do Ministério da Saúde, permitindo que estados e municípios contratem serviços adicionais. Caso esses entes não contratem e haja necessidade reconhecida de ampliação da oferta, a execução poderá ser feita diretamente pelo Grupo Hospitalar Conceição na região Sul e pela AgSUS nas demais regiões, sempre com pactuação nas Comissões Intergestores Bipartites (CIBs) e regulação sob controle local.
A segunda frente prevê o uso de infraestruturas hospitalares subutilizadas, especialmente no interior do país. O Ministério, por meio da AgSUS e do GHC, poderá prover equipes, insumos e medicamentos para ativar leitos e serviços ociosos, ampliando a capacidade instalada para a realização de procedimentos das Ofertas de Cuidados Integrados e do componente cirúrgico do programa.
A terceira forma de atuação envolve a implantação de até 150 unidades móveis de atenção especializada, em formato de carretas, destinadas a atender regiões com grave escassez de especialistas, como comunidades indígenas, periferias urbanas e áreas com grande desequilíbrio entre oferta e demanda. Essas unidades farão mutirões e ações organizadas de cuidado, sempre com pactuação local e regulação pública.
Rodrigo reforça que todas essas estratégias fazem parte de um esforço emergencial robusto do Ministério da Saúde diante de uma situação crítica. O objetivo é reduzir o tempo de espera, enfrentar o estoque acumulado de demandas reprimidas e garantir o direito à saúde da população, sem desorganizar os sistemas locais, e com respeito aos arranjos federativos e regulatórios do SUS.
Na análise de Túlio Franco, a possibilidade de prestação direta de serviços pelo Ministério da Saúde prevista no programa Agora Tem Especialistas é legítima e juridicamente respaldada, desde que essa atuação ocorra em situações críticas que justifiquem a excepcionalidade da medida, conforme estabelece a Medida Provisória nº 1301/2025, que institui o programa. O professor titular do ISC/UFF cita especificamente o artigo 16, parágrafo 4º, da MP, que autoriza a União, por meio do Ministério e de entidades da administração indireta, a executar ações de atenção especializada em contextos de urgência em saúde pública, caracterizada por alta demanda, longos tempos de espera e necessidade reconhecida de intervenção, por tempo determinado.
Ele compara essa possibilidade à atuação da Força Nacional do SUS, que também é acionada em situações emergenciais. No entanto, destaca que, mesmo diante de um quadro de urgência, é fundamental que essa intervenção seja pactuada no âmbito da Comissão Intergestores Tripartite, respeitando o pacto federativo e garantindo a participação ativa de estados e municípios no processo decisório, e acompanhada pelo Conselho Nacional de Saúde.
Conceição Rocha, no entanto, manifesta preocupação em relação à proposta, apontando que a atuação direta da União na execução dos serviços pode tensionar os princípios do SUS e fragilizar o pacto federativo. Embora reconheça que a medida pode estar alinhada, no presente, com uma perspectiva comprometida com os direitos e a democracia, ela ressalta que esse modelo envolve riscos, especialmente diante da possibilidade de mudanças futuras na condução política e administrativa. Ela observa que o modelo do SUS tem como fundamento a descentralização e aponta que a experiência do Estado do Rio de Janeiro — marcada pela existência de estruturas federais e estaduais ociosas — evidencia como a sobreposição de instâncias executoras pode gerar ineficiências e favorecer práticas de clientelismo. Para Conceição, cabe à União e aos estados exercer funções de planejamento e apoio técnico, enquanto a execução dos serviços deve permanecer prioritariamente sob responsabilidade dos municípios.
Conceição defende que a atuação federal seja diferenciada e concentrada nas áreas em que o sistema apresenta maior fragilidade — como terras indígenas, regiões remotas e áreas com vazio assistencial. Por outro lado, alerta que a possibilidade de o Sudeste — região com grande população, peso político e maior volume de recursos — passar a se relacionar diretamente com o governo federal na prestação de serviços pode gerar conflitos de competência, disputas por recursos e enfraquecimento do papel dos municípios. Para ela, o modelo de financiamento fundo a fundo deve ser preservado e fortalecido, pois, embora sujeito a críticas quanto ao seu uso, é um instrumento que assegura autonomia local e contribui para evitar a concentração de poder.
Ela também expressa dúvidas sobre a eficácia de modelos já testados, como as carretas de atendimento, considerando experiências desfavoráveis no Rio de Janeiro. Para ela, a prioridade deve ser o fortalecimento da rede pública permanente, por meio do investimento na capacidade instalada e do apoio técnico aos municípios.
De acordo com a presidente do COSEMS-RJ, a regionalização mal planejada, a concentração de serviços em poucos pontos do território e a ausência de pactuação eficaz dificultam o acesso da população e criam distorções, como filas desiguais e migrações forçadas entre regiões. Ela defende que espaços e dispositivos adicionais de governança, como consórcios intermunicipais, podem ter um papel importante na regulação e monitoramento, desde que os municípios assumam sua responsabilidade e que o modelo seja construído com base em solidariedade e transparência, e não como instrumento de comodidade política.
Cristiani Vieira Machado avalia que a entrada direta do Ministério da Saúde na execução ou na contratualização de serviços especializados representa uma mudança significativa e complexa na organização federativa do SUS. Ela lembra que, ao longo das décadas de 1990 e 2000, o Ministério reduziu progressivamente seu papel como prestador direto e contratualizador, especialmente em função do processo de descentralização político-administrativa, que transferiu essas atribuições prioritariamente aos municípios e, em menor grau, aos estados.
Nesse contexto, Cristiani observa que o fortalecimento da AgSUS, agora também com a responsabilidade de contratar serviços especializados do setor privado, amplia o escopo de atuação federal e representa uma inflexão em relação às diretrizes que vinham sendo seguidas. Embora compreenda que essa estratégia busca dar uma resposta emergencial ao problema das filas e à insatisfação crescente da população com o acesso à atenção especializada, ela alerta para riscos importantes de sustentabilidade a médio e longo prazos, além de possíveis tensões federativas que essa reconfiguração pode acentuar.
Cristiani também destaca que a proposta traz desafios sérios para a coordenação do cuidado nas redes de atenção à saúde, especialmente porque a continuidade do cuidado depende de articulação territorial e integração entre os diferentes níveis do sistema — algo que pode ser prejudicado se houver uma atuação centralizada e fragmentada por parte da União. Por isso, ela reforça que essa estratégia exigirá esforços ainda maiores de governança federativa, além de atenção cuidadosa à forma como será operacionalizada a execução direta e a contratualização federal, para que não se comprometam os princípios organizativos do SUS e a coerência das redes de cuidado no território.
O programa Agora Tem Especialistas inclui diversas ações voltadas à estruturação da oferta pública, como investimento em regulação, ampliação da oferta de exames por laboratórios públicos, criação de centros de apoio ao cuidado especializado, entre outras iniciativas. Contudo, é fundamental analisar até que ponto essas medidas são suficientes para fortalecer efetivamente a rede pública especializada e assegurar o acesso com qualidade e a continuidade do cuidado no SUS.
Neste contexto, Rodrigo Oliveira destaca que o fortalecimento do serviço público especializado é uma dimensão estrutural essencial, ainda que muitas vezes fique ofuscada pelas ações emergenciais mais visíveis. Para ele, o desafio da atenção especializada no Brasil é profundamente complexo e, por isso, não pode ser enfrentado com soluções simples ou únicas. A estratégia do Ministério tem sido apostar em um conjunto diversificado de ações e arranjos, pensados a partir das diferentes realidades das mais de 100 macrorregiões e mais de 400 regiões de saúde do país.
Ele enfatiza que o programa busca atuar em duas frentes simultâneas: responder à urgência da população que espera por atendimento e fortalecer a base do sistema público especializado, o que inclui melhorar a capacidade de negociação com o setor privado, reorganizar ofertas estatais e aprimorar os dispositivos de gestão. Embora as medidas excepcionais ganhem mais visibilidade, o diretor afirma que há uma aposta profunda na reestruturação e no fortalecimento do SUS, como caminho para garantir acesso, eficiência e equidade na atenção especializada em saúde.
Para Túlio Franco, a ampliação da oferta de serviços de média e alta complexidade no SUS prevista pelo programa, desde que realizada conforme os princípios do SUS, representa um legado duradouro para o sistema de saúde, contribuindo para enfrentar o problema das longas filas e dos tempos excessivos de espera por atendimento especializado e hospitalar.
No entanto, o professor titular do Instituto de Saúde Coletiva da UFF alerta que, até o momento, o programa atua exclusivamente sobre o lado da oferta, deixando de lado a gestão da demanda, que considera fundamental para o sucesso da estratégia. Segundo Túlio, fortalecer a Atenção Básica é essencial para tornar o sistema mais resolutivo — uma rede básica estruturada, equipada, com profissionais capacitados e atuando em redes colaborativas tem o potencial de resolver grande parte dos problemas de saúde da população, evitando encaminhamentos desnecessários à atenção especializada. Ele argumenta que muitos dos casos atualmente referenciados poderiam ser resolvidos na atenção primária, caso essa estivesse mais fortalecida.
Túlio cita ainda experiências internacionais, como os hospitais comunitários europeus, implementados na Itália e em outros países, vinculados territorialmente à atenção básica e com foco em tecnologias leves, além de exemplos do Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido, que estabeleceu como meta a realização de 80 a 85% dos procedimentos como pequenas cirurgias e similares, em regime ambulatorial ou hospital-dia, fortalecendo o dispositivo de cuidados intermediários, para realização de procedimentos clínicos, cirúrgicos, diagnósticos e terapêuticos. Essas estratégias, segundo ele, otimizam os recursos hospitalares e evitam internações desnecessárias.
Túlio argumenta que o Agora Tem Especialistas deveria incluir, de forma articulada, ações voltadas à gestão da demanda, ou seja, investir na Rede Básica e em serviços de referência territorial, para alcançar resultados sustentáveis e eficazes. Segundo ele, sem esse enfoque, mesmo com o aumento do número de especialistas, a pressão de demanda sobre o sistema continuará constante, o que pode limitar os resultados do programa no enfrentamento dos gargalos da atenção especializada no SUS. “É importante que esse aspecto seja considerado e implementado além das ações já previstas no programa”, afirma.
Sobre o fortalecimento da atenção especializada no SUS, Conceição Rocha destaca que o modelo de redes de atenção à saúde foi concebido para fortalecer o setor público e diminuir a dependência do setor privado, especialmente na média e alta complexidade. No entanto, esse ideal ainda está longe de ser alcançado, principalmente devido à pulverização dos serviços e à fragilidade do processo de regionalização, que demanda maior envolvimento dos estados — algo que, segundo ela, não tem ocorrido de maneira consistente.
Conceição alerta para desafios importantes que impactam diretamente o fortalecimento da atenção especializada pública no SUS. Ela critica a tendência de transferir, de forma excessiva, a organização da rede para os municípios e COSEMS, quando essa responsabilidade deveria ser compartilhada com os estados. Essa descentralização sem o devido suporte técnico e financeiro sobrecarrega as gestões locais, comprometendo a capacidade de oferecer serviços especializados de qualidade e integrados.
Além disso, ela também alerta para o risco de distorções na atuação dos consórcios intermunicipais, que, embora sejam instrumentos importantes para a gestão regional, não são entes federativos e, em alguns casos, têm assumido um papel que extrapola suas funções — o que pode gerar mais desorganização do que soluções.
Outro ponto crítico levantado é a competição por recursos entre o setor público e o setor privado, que já acontece e pode se acirrar com os novos formatos de financiamento e contratualização. Ela observa que, sem uma atuação firme por parte do Ministério da Saúde e dos estados, as decisões regionais podem ficar fragmentadas, influenciadas por disputas locais e distantes das necessidades reais da população, o que compromete a equidade e a sustentabilidade da atenção especializada pública.
Conceição destaca ainda um dos principais gargalos estruturais do Sistema Único de Saúde: a falta de investimento em força de trabalho pública e em carreiras estruturadas para os profissionais do SUS. Segundo ela, há uma carência crescente de técnicos qualificados para implementar as mudanças exigidas por programas como o Agora Tem Especialistas, o que compromete a qualidade da execução e pode desvirtuar as propostas iniciais. A dependência crescente de vínculos precários, como contratos via OSS, PJ ou RPA, fragiliza a sustentabilidade do sistema, que precisa de servidores públicos com acúmulo técnico, compromisso institucional e permanência nos serviços para garantir a continuidade das políticas públicas.
Ainda no debate sobre a atenção especializada pública no SUS, Cristiani Vieira Machado avalia que o aspecto mais positivo da proposta do programa Agora Tem Especialistas está no conjunto de iniciativas voltadas à ampliação e qualificação da oferta pública. Entre essas ações, ela destaca os investimentos em regulação, exames via laboratórios públicos, a criação de centros de apoio ao cuidado especializado, equipamentos móveis e iniciativas de Telesaúde. Segundo a pesquisadora, esse conjunto representa o componente mais virtuoso da proposta, por ser estruturalmente mais sólido, sustentável a médio e longo prazos e alinhado à redução das desigualdades no acesso à saúde — além de contribuir diretamente para a consolidação do SUS.
Apesar de reconhecer avanços, Cristiani lamenta que a dimensão pública não ocupe uma posição central na proposta. Em sua avaliação, a estratégia predominante do programa ainda se apoia fortemente na contratação de prestadores privados — especialmente hospitais e serviços especializados — o que pode limitar seu potencial de transformação estrutural. Para a pesquisadora, o fortalecimento da atenção especializada poderia ser mais efetivo se o programa priorizasse a expansão e qualificação da rede pública, com investimentos em infraestrutura e contratação de profissionais pelo SUS, especialmente em regiões com acesso mais restrito e menor presença do setor privado. Na sua avaliação essa diretriz estaria mais alinhada aos princípios do SUS e tenderia a ampliar a capacidade do programa de promover equidade e sustentabilidade no longo prazo.
As diferentes perspectivas apresentadas nas entrevistas contribuem para identificar questões importantes que permeiam o debate sobre o programa Agora Tem Especialistas. Há um reconhecimento compartilhado quanto ao caráter crônico das dificuldades de acesso à atenção especializada no SUS, agravadas pelos impactos da pandemia e pelo envelhecimento da população. Nesse contexto, o programa tem sido amplamente compreendido como uma iniciativa necessária e oportuna, ainda que existam diferentes avaliações sobre suas estratégias e a sustentabilidade de seus efeitos a médio e longo prazos.
Um ponto de atenção refere-se à ênfase na contratação de serviços privados, incluindo mecanismos como a compensação de dívidas com prestadores e planos de saúde. Embora a participação do setor privado esteja prevista constitucionalmente como complementar ao SUS, foram expressas preocupações sobre o possível aumento da dependência dessa rede, o que poderia desviar o foco de investimentos necessários para fortalecer a capacidade pública na atenção especializada. Nesse sentido, algumas análises ressaltam que os investimentos mais estruturantes e duradouros seriam aqueles voltados à ampliação e qualificação da rede pública especializada, com fortalecimento da oferta estatal, valorização dos profissionais e estímulo à reorganização da rede.
A atuação direta da União na prestação de serviços — por meio da AgSUS, do Grupo Hospitalar Conceição e de unidades móveis — é vista como uma resposta viável e pontual, especialmente em situações de emergência e em regiões com vazios assistenciais. Ao mesmo tempo, surgem questionamentos sobre os possíveis impactos dessa atuação na dinâmica da pactuação federativa.
Algumas análises apontam que o êxito e o legado do programa podem ser ampliados por meio de diversas estratégias, como a articulação com iniciativas de fortalecimento da atenção primária, avanços na regionalização, mecanismos de governança tripartite, além de investimentos na rede pública e valorização dos profissionais do SUS.
O acompanhamento cuidadoso da implementação e operacionalização do programa pode ser fundamental para identificar quais componentes ganham prioridade, mapear os desafios emergentes, avaliar sua contribuição efetiva para superar barreiras históricas de acesso à atenção especializada — especialmente na redução de filas e tempos de espera em média e alta complexidade — e para consolidar os legados na ampliação e qualificação desse acesso no SUS.